PÃO DE VIDA

Da Casa de Repouso à Casa do Gaiato

Hoje, é dia de S. João Bosco [1815†1888], um grande exemplo eclesial e tão actual para a educação integral dos mais novos: «Olhemos como filhos nossos para aqueles sobre os quais exercemos alguma autoridade» [Epistolário, 4, Torino, 1959, p.201]. Pai Américo também foi apelidado de D. Bosco português, afirmando, como o patrono dos jovens: «Eu quero os meus filhos no paraíso» [O Gaiato, N.º 68, 5 Out. 1946, p. 4].

Nesta vaga de frio, que faz sofrer muito mais as pessoas sem-abrigo e frágeis, a outra noite muito gélida seguiu-se mais um dia formidável de céu limpíssimo e cujo azul não há outro. Espantada com as camadas de geada, a rapaziada miúda tratou logo de pedir luvas à senhora. Com este tempo, necessário para o equilíbrio ecológico, no horizonte descortinam-se assim e bem as vistas naturais desta Casa, como a serra da Lousã. Juntinho da fonte caseira - a desejada bica - encontra-se uma forte e antiga laranjeira, que tem dado sempre muitos frutos. De vez em quando, com os abanões do vento e dos marotos, lá vão caindo algumas laranjas na calçada próxima da vetusta entrada e da casa-mãe. É um sítio obrigatório de passagem vastas vezes ao dia, em especial no sentido das correrias pró refeitório. Ao vê-la carregada de frutos, eis que damos connosco a olhar mais além e ver a imensidão de filhos que a Obra da Rua tem acolhido e procurado ajudar a crescer, com as suas virtudes e fragilidades, em mais de oito décadas! Pai Américo sonhou e realizou uma Obra para pobres e da Igreja, ligada aos Bispos. Sendo um profeta experimentado e avisado, conseguiu um Alvará e Estatutos, para uma obra nova, de forma a singrar na relação com os poderes oficiais. Os tempos rolaram, com mudanças políticas e sociais. No acessório, os artigos estatutários foram sendo actualizados e aprovados pela Igreja e pelo Estado. Com o seu historial e na acção social, a Obra da Rua não pode perder o seu carácter eclesial e como serviço aos pobres. Mais, não pode deixar-se descaracterizar no essencial - obra de família, dos seus filhos, que colaboram e sob o sinal da Cruz!

O Dr. João Evangelista Loureiro, académico e investigador de reconhecido mérito, que estudou cedo e bem a Obra da Rua, com conhecimento de causa, sublinhou: «De início houve que vencer algumas dificuldades, mas apesar da incredulidade de uns tantos, acabaram por ser lançadas as bases duma obra que, no seu género, é única em Portugal e tem uma inegável transcendência, quer no aspecto social, quer no aspecto educativo. Disto nos fala claramente o interesse que as Casas do Gaiato têm despertado aos estudiosos dos movimentos pedagógicos modernos, considerando-as como um dos ensaios mais logrados da Pedagogia Contemporânea» [Estruturação e análise de alguns princípios educativos da «Obra da Rua», Lourenço Marques, 1966, p. 157].

Depois destes considerandos e em face doutra tempestade, a que temos de resistir na barca, com Jesus ao leme, continuamos a seguir com vivo interesse o folhetim Obra da Rua - Obra de rapazes, para rapazes, pelos rapazes [Dez. 1943]. Eis mais alguns parágrafos:

«O número de habitantes sobe: no fim do ano eram uns dezoito. Casa de Repouso, Preventório, projectos iniciais - tudo foi riscado. Acabou-se o repouso do doente, a tosse, o termómetro, as injecções, a vigilância; tudo quanto marcava, enfim, a papeleta dos Dispensários de Coimbra. Diante da maravilha do leite e do sol, perdemos toda a confiança no saber dos médicos, sem perder nada do respeito que lhes devemos.

Ao raiar do segundo ano outras normas se adaptaram, fruto de experiências colhidas no primeiro. É o vadio que chega para ser um trabalhador, e não um doente. Quer venha pelo seu pé, quer roubado por nós à vadiagem, ou ainda apresentado por quem nos merece crédito - olha-se para o rapaz como um doente da alma e como tal se trata.

Nos primeiros dias é hóspede. Mira. Pregunta [sic]. Manifesta-se. Os que estão, não aprendem nada do que ele ensina. Vem das ruas. Mas ensinam-lhe tudo quanto sabem, para que não volte para a rua. Cedo termina a hospedagem. No fim de uma semana, marca-se-lhe obrigação. Entra no regimento.

É necessário ter-se confiança e medo na influência do rapaz junto do rapaz. Não vá o educador da fauna da rua cair no erro de supor que é ele quem faz tudo. Um caso: apareceu-nos um vadio de 16 anos, fugido de uma cadeia. Era simplesmente hediondo. Pede para entrar e ficar. Enquanto espera, chama-se de parte o nosso pequenino «Mestre de Moral». Previne-se. Denuncia-se o perigo do fugitivo das prisões. Deixamo-lo entrar na comunidade. Pois hoje é trabalhador número um! Influência do rapaz junto do rapaz. Outro caso: Entram três pequeninos vadios, irmãos. São de Abrantes. Perderam os pais. Eram de tal raça, que um bondoso sacerdote que se propôs conduzi-los, houve de chamar o guarda civil em certa estação, para os segurar. Nunca tinham visto cama, nem mesa, nem hábitos humanos. Perfeitamente selvagens. Pois dentro em pouco, guiados, ensinados, influenciados pelos seus companheiros, são outros.

- Ai! quem te viu e quem te vê - dizia o povo da Lousã de um rapaz endiabrado daquela vila depois de ter estado uns tempos nas nossas comunidades.

Ora tudo isto é influência deles entre si.

O trabalho é a base da vida nas Casas do Gaiato. É a espinha dorsal. É a cura que se impõe a cada um dos doentes da vadiagem que vem dar à nossa porta.

Devem ter todos as horas ocupadas, todas. É preciso que cheguem à noite moídos, para que o sono seja repouso. O domingo é dia suspirado precisamente porque nos mais se trabalha. Cumprem o decálogo com alegria.».

Ao ficarmos por aqui, para já, é de notar que a Casa de Repouso do Gaiato Pobre foi dando lugar a uma casa de trabalho e então Casa do Gaiato. Neste sentido,depois dos seus primeiros passos, a Obra da Rua foi-se transformando «numa instituição educativa para recuperação da criança abandonada» [Loureiro, p.156]. Pai Américo foi assim um verdadeiro e pioneiro Educador Social, de rua.

Na actualidade social ocidental, em que nos é dado viver, procurando descortinar os sinais dos tempos, entre outros, salienta-se evidentemente um triste inverno demográfico. Deste modo, a população da Obra da Rua em Portugal foi-se direccionando para os filhos de deslocados e refugiados com dificuldades várias, nomeadamente os garotos com proveniência africana (das ex-colónias portuguesas), cujos parentes pedem ajuda, pois não querem perder os seus filhos, apesar das fragilidades socio-económicas e dos problemas de saúde. Deste modo, nas últimas décadas e de norte a sul (nas diversas Casas), têm sido dadas respostas em acolhimento residencial (mais ou menos longo) a crianças, adolescentes e jovens até ao reagrupamento familiar e à sua autonomização. Por outro lado, com o aumento da escolaridade obrigatória, a implicação nas tarefas da Casa foi regredindo a olhos vistos. Contudo, há serviços em que todos devem continuar a ser responsabilizados, conforme a sua idade e capacidade, senão são meros colegiais. É necessário muita perseverança no modo de estar e agir nestas comunidades, considerando que numa família cristã não deverá haver lugar para senhores, parasitas e pequenos ditadores. Certo é que desde cedo se deve aprender a comer o pão com o suor do seu rosto, à medida de cada pessoa e nas suas circunstâncias. É, pois, de envolver os filhos sempre em tarefas domésticas e actividades formativas, humanas e espirituais, para um desenvolvimento integral. Com o retardamento da entrada dos jovens nas actividades laborais, como fazer a sua preparação para uma economia altamente competitiva? Acontece que faltam algumas respostas necessárias em certas áreas laborais e em várias zonas, de âmbito intermédio - técnico-profissionais - necessárias no mercado e com as ferramentas modernas, de que carece o mundo actual do trabalho. Para um desenvolvimento justo e sustentável, não se podem adiar as opções mais urgentes, deixando muitos jovens à deriva e alienados, surgindo mais dependentes. A deriva dos Continentes retalhou o globo terrestre...

Padre Manuel Mendes