PÃO DE VIDA

A Casa de Repouso do Gaiato Pobre

Em 1936, quando um dia passou pelas Colónias de Férias do Garoto da Baixa de Coimbra, António Moreira da Rocha, um conterrâneo penafidelense de Padre Américo, que estudou em Coimbra e foi presbítero da diocese do Porto, mais tarde recordou e escreveu assim: «[...] Embora o rapazio se mostrasse muito feliz, eu tomei a liberdade de dizer ao P.e Américo que 'de tudo aquilo apenas se aproveitava o valor da ideia' - tão precárias eram, por força das circunstâncias, as condições em que realizava obra de tanto vulto. Ele sorriu e nada respondeu. Muito me admirei mais tarde, quando já em pleno funcionamento da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, fazendo a comparação desta com a estadia em S. Pedro de Alva, me repetia a aludida frase, que despretenciosamente, e em tom de graça, lhe dissera noutros tempos.» [Penafiel, n. 1, 1972, p. 45]. Em nota adicional, como investigador penafidelense, nessa revista, deixou apontamentos genealógicos sobre a ascendência de Padre Américo - da Casa do Bairro de Baixo, em Salvador de Galegos, até ao século XVI.

O objectivo prioritário deste sonho cristão para os mais novos sem eira nem beira, foi traçado nos primórdios de modo excelente pelo Padre Américo, numa clara opção preferencial pelos mais pobres:

«A gente vai procurar o pequenino mais fraco, entre os doentes; o mais viciado, entre os viciados; o mais desprezado, entre os desprezados.

Procuramos, outrossim, dar-lhes do melhor que temos em casa, adormecê-los em lençóis lavados, ensiná-los a apanhar borboletas, e pôr as mãos, mais eles, à hora da refeição. O resto não é da nossa conta! [Casa de Repouso do Gaiato Pobre, Coimbra, 1941, p.16].

Desse tempo de misérias várias, agravadas pelo contexto internacional da II Guerra Mundial, e considerando outras respostas educativas para a infância e adolescência abandonada e marginalizada, um investigador pioneiro sobre a pedagogia da Obra da Rua, João Evangelista Loureiro, não teve dúvidas em afirmar o seguinte: «De início houve que vencer algumas dificuldades, mas apesar da incredulidade de uns tantos, acabaram por ser lançadas as bases duma obra que, no seu género, é única em Portugal e tem uma inegável transcendência, quer no aspecto social, quer no aspecto educativo. Disto nos fala claramente o interesse que as Casas do Gaiato têm despertado aos estudiosos dos movimentos pedagógicos modernos, considerando-as como um dos ensaios mais logrados da Pedagogia Contemporânea.» [Estruturação e análise de alguns princípios educativos da «Obra da Rua», sep., Lourenço Marques, 1966, p. 157].

Para que o dito simples Relatório sobre a primeira Casa do Gaiato, que tem sido transcrito, seja conhecido na íntegra, tem o seu interesse ainda ver uma panorâmica da Casa e da Quinta, em Janeiro de 1947, conforme foi traçada pelo tal observador, que nos deixou uma página com atenção aos pormenores, com significado no projecto educativo sonhado por Pai Américo, que ia sendo realizado de modo novo, isto é, em moldes revolucionários para a época. Vejamos, então, onde vivia feliz e em família cristã a comunidade dos gaiatos, in illo tempore, sob o título Instalação:

«A Casa do Gaiato abriu em [7] de Janeiro de 1940 com 3 rapazes.

Instalada na Quinta de S. Braz, com uma área de 3 hectares e sita nas faldas da Serra da Lousã, freguesia e concelho de Miranda do Corvo, está a Casa do Gaiato a 1 quilómetro a Este da sede do concelho, a 8 quilómetros a Noroeste da Lousã e 18 quilómetros a Sudeste de Coimbra. É servida pelas estradas que ligam a Lousã a Condeixa-a-Nova e a Coimbra, e pela estação de caminho-de-ferro de Miranda do Corvo.

À entrada da Quinta, sobre a direita duma íngreme escadaria de cimento, um moinho de água, de construção recente, entregue aos cuidados do pequeno moleiro dá a primeira nota do valor educativo da Obra da Rua.

Entre oliveiras, latadas, pomares, horta e terras de semeadura atinge-se o casario da quinta.

A casa de habitação, de aspecto limpo e arejado, toda vivenda dos rapazes, o forno onde é cozido o pão, a oficina de carpintaria, o estábulo da vaquinha e do único boi de trabalho, as pocilgas, os galinheiros, o recinto cercado de rede de arame para as aves domésticas permanecerem durante o dia, lojas para arrumação e guarda das rações dos animais, o alpendre onde guardam os apetrechos da lavoura e lenhas, o curral do gado, o pequeno lago para os patos, o tanque de lavar roupa, duas piscinas onde os rapazes se banham durante o Verão e que servem também de reservatórios das águas para o moinho, o aviários com canários, pintassilgos, melros e pombos e um pouco mais distante uma nitreira onde é curtido o adubo para as terras, todo este conjunto de edifícios e instalações revelam um bom ordenamento e uma excelente orientação na organização da vida dos rapazes. Aqui e além lançam-se os alicerces de novas moradias que, pelo elevado custo dos materiais de construção e de mão-de-obra, progridem lentamente.

Não falta também, como é natural, o necessário campo de jogos.»

Nesse tempo, desta Casa do Gaiato, era responsável o Padre Adriano Antunes. Entretanto, em Junho de 1947, chegou o Padre Manuel Gonçalves. Os tempos rolaram e, sendo responsável o Padre Horácio, em 6 de Setembro de 1953 foi inaugurado um edifício na Casa do Gaiato de Miranda do Corvo com os seguintes melhoramentos: cozinha, refeitório, balneário e dependências de senhoras. Esteve presente neste acontecimento o Bispo de Coimbra, D. Ernesto Sena de Oliveira [com reportagem em álbum, da Foto Antony - Penafiel; e que transitou desta Casa para o Memorial da Obra da Rua, em Paço de Sousa].

Um exemplo significativo da novidade da Obra da Rua - de Rapazes, para Rapazes, pelos Rapazes - que deu os primeiros passos junto aos rios Alva e Ceira, nas Colónias de Férias, foi registado para memória futura desta forma tão sentida por Pai Américo: «[...] De uma vez, no rio Ceira, caiu-me um pequeno à água. Sítio fundo. Vi o perigo. Gritei. Gritei. Quem é que acudiu? Eles. Vem um, atira-se à água, salva o companheiro. Ainda hoje sinto um grande alívio, quando calha ver em Coimbra salvado e salvador! Eles. Sempre eles. Tudo eles.» [O Gaiato, n. 91, 23 Agosto 1947, p. 4]. Numa expressão do nosso povo crente: Foi Deus que o salvou!

Padre Manuel Mendes