PÃO DE VIDA

A Obra da Rua nasceu do Natal

A nascente das cercanias da Lusa Atenas, no vale Dueça e lugar de Bujos, há mais de um século que se encontrava já um modesto solar de campo e casas anexas na quinta de S. Braz, vivenda altaneira em terra de oleiros, com ares lavados, de guieiras frescas.

Antes de rebentar a trágica II Guerra Mundial, numa tarde de Verão, em Julho de 1939, o Padre Américo atreveu-se a ver e apalavrar essa casa, nos aros de Miranda do Corvo. Depois, a 3 de Outubro desse ano, na cidade e comarca de Coimbra [Rua da Sofia, n. 121], perante o notário Augusto Máximo de Figueiredo, como procurador de Aníbal Ferreira da Gama e esposa, moradores em Lisboa, foram vendidos por quarenta mil escudos a Padre Américo Monteiro de Aguiar, residente no Seminário de Coimbra e como procurador da 'Sociedade Instrutiva Ozanam', casas de sobrado e lojas, telheiro e terra de cultura [Cúria diocesana de Coimbra]. Estes prédios tinham sido comprados ao Cónego António Ferreira da Gama [e a outros, em 22 de Outubro de 1921], o barbudo Padre Gama [Edgar Panão - Campos de sombras, Coimbra, 2014, p. 89].

Com vastos horizontes, do nascente ao poente, daí alcançam-se ao longe as serranias sumptuosas da Lousã, a matriz do Salvador e a torre sineira, e o Santuário do Divino Senhor da Serra, acima do mosteiro de Semide, pilhado na voragem mata-frades. Neste alto, de peregrinações com muitos romeiros, viu a luz o Padre António da Costa, mártir carmelita na Guerra Civil de Espanha, a canonizar.

O fundador da Obra da Rua apresentava-se como um padrezinho de Coimbra, o padre das ruas. De capa negra, andava então pelos 52 anos. Chegou a ser frade franciscano em Vilariño de la Ramallosa, mas teve de rumar a Coimbra, sendo ordenado em 1929 e pobre por vocação. Depois, foi enviado a servir os últimos pelo seu Bispo de Coimbra, D. Manuel, como recoveiro dos pobres e a cuidar da Sopa dos Pobres [1932].

No Beco-do-Moreno, em Coimbra, em Maio de trinta e cinco, um garoto da rua embargou-lhe o seu caminho, num angustioso e imperativo 'venha ver o meu pai que está na cama e a gente passamos fome'. Este foi um desafio muito forte que o chamou a levar garotada pobre da baixa de Coimbra para Colónias de férias, nas margens do Alva [1935] e do Ceira [1937], auxiliado por seminaristas e estudantes da Universidade. Finalmente, chegou a uma hora crucial e institucional: Não podia sofrer por mais tempo o ouvir, no fim das colónias, 'deixe-me ficar aqui, que a gente em casa passamos fome' - eu, que sabia a verdade toda! [Obra da Rua, Coimbra, 1942, p.9,38].

Considerando uma das necessidades sociais do seu tempo e a sua vontade de pôr em marcha uma Obra nova, destinou essa casa para rapazes doentes e pobres nos moldes da família cristã. Não era asilo nem orfanato. A Casa de Repouso do Gaiato Pobre, seu nome primitivo, abriu as portas aos três primeiros garotos doentes e pobres na primeira semana de Janeiro de mil novecentos e quarenta, em dia [7] do Santíssimo Nome de Jesus. Até ao fim desse ano fizeram ali cura de repouso quarenta e dois rapazes. De facto, conforme foi narrando [O Gaiato, n. 4, 16 Abril 1944], foi ocupada em primeira mão por rapazitos fracos, recrutados nas zonas do pobre. Era trabalho das nossas mãos. O médico examinava. O catraio seguia. A cura fazia-se num instante, com banhos de sol em cordilheiras de leite. Alguns vinham ali tomá-lo pela primeira vez em sua vida: era um delirar! O Zezito Teixeira depois de levar ao fundo a malga, grita de contente: - Ai que vossemecê tem uma cara tão bonita! Um outro, a fumegar de contente, trepa a mesa, dá-nos um beijo na face e revela: - A gente em casa não toma leite!

[...] Alargou-se a Obra para receber mais gente, que era justamente o problema. Comprou-se uma casa contígua, pela morte do seu dono. Mais outra anexa, por troca. Um terreno para construir a nossa capela. Igualmente outro de cultura, para dar que fazer. Instalámos luz. Fomos buscar água a meio quilómetro. Tratou-se de gados, de alfaias, de ferramentas. Pedimos um posto de ensino ao Ministro da Educação Nacional. Doía-nos a sorte da criança abandonada.

Havia nessa casa uma jumenta, levada de manhã cedo para os montes, onde os mais crescidos iam cortar mato, com o almoço em cesta de vime. Depois, distribuíam o mato nos estábulos, que dava estrume para as terras. Os rapazitos, depois das horas da Escola, iam às pinhas e à lenha caída pelos montes fora, com merenda nas algibeiras. Colhiam amoras nos caminhos e traziam nas mãos ramos de flores, que os pequeninos punham nas jarras. Havia capoeiras e galinhas à solta. E tomavam uma cabra pela guita, a pastar pelos campos fora. É de chamar aqui com ternura a bela história de Marcelino - Pão e vinho [1953], acolhido em pobre convento franciscano.

Padre Manuel Mendes