PÃO DE VIDA

Alvará

Nos anais da Obra da Rua, parece-nos pertinente e conveniente continuar a colocar em cima do alqueire, à luz de uma candeia com bom azeite das nossas preciosas oliveiras, mais notícias de memórias que ajudem actualmente a conhecer melhor Pai Américo e a Família que fundou com sangue, suor e lágrimas, no itinerário rasteirinho de serviço aos pobres, na comunhão da Igreja Católica e inserida na sociedade civil, com as suas leis e pluralismo ideológico. Os seus alicerces fundamentais foram traçados muito claramente desde os primórdios da sua história, para se saber verdadeiramente o que é a Obra da Rua e para onde tem caminhado. Entre outras, em 1950, deixou esta síntese firme:

«Em boa hora se fugiu à ideia, desde o começo, de fundar uma congregação religiosa de padres para a Obra da Rua; e desta sorte é ela, a Obra da Rua, uma obra social da Igreja, aonde os nossos Bispos estão em sua casa. [...]». ['Nota da Quinzena', in O Gaiato, ano VII, n.º 178, 23 Dez. 1950, p. 2].

Desde as primeiras folhas de germinação da Obra da Rua, aos olhos humanos aparentemente desorganizada, tendo em vista conseguir os necessários Estatutos e com licença dos Bispos, Padre Américo foi correndo por ceca e meca, nomeadamente nos corredores dos serviços e Ministérios governamentais, do Estado Novo, consequente à Constituição portuguesa de 1933, conforme confessou:

«Se eu fosse um dia a escrever as minhas memórias, havia de ter um capítulo das coisas que me têm acontecido nas escadas e corredores e gabinetes de todos os Ministérios.» [De como eu fui.., Paço de Sousa, 1987, p. 249].

Foi seu intuito declarado definir muito bem o enquadramento legal desta acção social, para que não restassem equívocos, como escreveu em 1952:

«A Obra da Rua nasceu há onze anos e teve por padrinho um estatuto dado pelo governador civil de Coimbra. Um outro estatuto, pelo governador civil do Porto. E o último, foi na Arcada, por um magistrado da Nação. Todos dizem essencialmente o mesmo, porque inspirados na mesma Lei. Aceitei os três instrumentos. Tinha evidentemente de me munir deles, para ter voz nos Ministérios. Não me deixariam, tão pouco eu poderia, só por mim, fazer a demonstração do Incrível, sem primeiro me acreditar. A história universal está cheia destes casos, em todos os campos aonde o homem passa a ser chamado. Nós sabemos e cuidamos que isso foi outrora, sem sabermos que também pode ser hoje. Pode, sim. Eu estou a fazer história. Aceitei os três documentos como facilidade de agir, mas nunca com o propósito de fazer como lá vem. Eu nunca li nenhum deles. [...]». ['Um Equívoco', in O Gaiato, ano IX, n.º 215, 24 Maio 1952, p. 1].

Neste sentido, como aguardava há muito oportunidade, será melhor não adiar mais a publicação de mais uma fonte inédita, à qual foi possível chegar ao cabo de persistente investigação no Arquivo da Universidade de Coimbra. Trata-se exactamente do Alvará da Obra da Rua, com o primitivo nome da primeira Casa do Gaiato. Justifica-se plenamente a sua transcrição integral para avivar memórias, considerando que o barco não navegou ao sabor dos ventos, mas com os pés assentes na terra e a Cruz como estandarte. O documento foi emanado de instância estatal, no casario citadino em encosta do rio Mondego, com a torre da Universidade ao alto, a que o escritor Manuel Ribeiro chamou com acerto: «a Colina Sagrada, capaz de reacender nos peitos a energia antiga e reavivar nas almas novas a fé nos grandes destinos da Pátria.» [A Colina Sagrada, Lisboa, 1926, p.6]. Segue-se, então, o registo escrito da autorização de funcionamento de uma Casa para Rapazes pobres, que abriu as suas portas em 7 de Janeiro de 1940, acolhendo os três primeiros filhos, pela mão de Pai Américo. Eis:

«Serviço da República

ALVARÁ

[à margem, em cima, nas págs. I e II] Governo Civil do Distrito de Coimbra - 1.ª Repartição. L.º A. N.º 28.

[à margem, em baixo, nas págs. I e II] Registado no L.º comp. a fls.... O Secretário Geral, [rubrica]

Domingos António Bastos Carrapato Calado Branco, Major de Infantaria e Governador Civil deste Distrito Administrativo

Visto e examinado o projecto dos Estatutos por que pretende reger-se a CASA DE REPOUSO DO GAIATO POBRE, com sede em Bujos, do Concelho de Miranda do Corvo, deste Distrito;

Considerando que, por seu despacho de 18 de Maio corrente, autorizou o Ex.mo Sub-secretário de Estado da Assistência Social, nos termos do artigo 440.º do Código Administrativo, o funcionamento desta associação de beneficência, tendo em vista o referido projecto;

Usando das atribuições que a lei me confere, designadamente o n.º 8 do artigo 407.º do Código Administrativo;

Tenho por conveniente aprovar, para todos os efeitos legais, os estatutos da CASA DE REPOUSO DO GAIATO POBRE, com sede em Bujos, do Concelho de Miranda do Corvo, deste Distrito Administrativo, que ficam fazendo parte integrante deste Alvará e se compõem, no original de nove artigos escritos em uma folha de papel selado, numerada e rubricada pelo Secretário deste Governo Civil, António Luiz da Costa Rodrigues, ficando a mesma associação sujeita, em tudo quanto nos mesmos Estatutos não esteja previsto, a todas as disposições legais respeitantes a instituições desta natureza.

[cont. ALVARÁ, p. II] Sem emolumentos das Secretarias do Estado e selo por não serem devidos.

Dado, passado e selado neste Governo Civil do Distrito Administrativo de Coimbra, aos 28 de Maio de 1942.

[assinatura] Domingos António Bastos Carrapato Calado Branco.

Conta:

Emol. do Estado 12$50

Emol. da Secret. deste Gov. Civil - 12$50

3% $80

Fundo de alienados 1$00

Total 26$80

[3 selos de 6$00, 7$00 e 0$30, assinados e datados - 28/5/942.].

Como informação complementar, é de referir que Domingos António Bastos Carrapato Calado Branco, oficial do Exército, foi Governador Civil de Portalegre (17.11.1934 - 14.1.1938) e de Coimbra (14.1.1938 - 30.9.1942) [Vd. Sousa, Fernando de, coord. - Os Governos Civis de Portugal. História e Memória (1835-2011). Porto: Cepese, 2014, p. 453].

Se dúvidas houvesse, depois de mais de dois anos de actividade, Padre Américo conseguiu licença para essa Casa funcionar legalmente. Porém, a vida transbordante da Obra da Rua - de ajudas aflitivas e de promoção dos pobres - não cabia em tais parágrafos, como os de qualquer associação civil, pois não se enquadravam numa realidade nova, saída do Evangelho.

Então, para outra vez, têm de ficar os ditos Estatutos, de 1942. De notar que Padre Américo disse que nunca os leu, mas aceitou como facilidade de agir, nunca com o propósito de fazer como lá vem. Lá tinha razões válidas, do Mestre, para não ficar preso a algumas leis...

Padre Manuel Mendes