
PÃO DE VIDA
Última viagem
O Padre Augusto Nunes Pereira, condiscípulo do Padre Américo no Seminário de Coimbra e companheiro de ordenação presbiteral, escreveu um precioso testemunho, no jornal diocesano de Coimbra, que vale bem a pena transcrever na íntegra, como memória viva da sua vida cheia, de amor a Deus e ao próximo, traçando um perfil seguro, pela sua proximidade. Eis:
Morreu o Padre Américo, mas a sua obra é imortal.
A notícia do desastre que levou o P.e Américo à cama dum hospital, e dali para a eternidade, encheu de consternação Portugal inteiro. E é escusado dizer porquê. Todo o país o conhecia, toda a gente admirava as suas virtudes; os pobres tinham nele um pai carinhoso, e os ricos um admirável despertador que lhes apontava a hora actual da caridade cristã.
Profundo e persistente doutrinador, e ao mesmo tempo dotado dum forte realismo prático e operoso, conseguiu galvanizar a sociedade portuguesa de tal forma que muitos dos seus empreendimentos se vão generalizando ao país inteiro.
É difícil, é mesmo impossível, traçar em duas linhas o perfil deste homem. Mais difícil ainda mencionar todo o bem que espalhou sobre a terra.
No dia 28 do corrente faz 27 anos que, na capela da Anunciação, do Seminário de Coimbra, ele recebia, juntamente com mais dois companheiros, a ordem do presbiterado. E esse facto recorda-me os tempos do Seminário, quando o Américo, ainda estudante, mas homem culto, viajado e experimentado, se fazia notar pela sua jovialidade, pelo zelo junto dos companheiros, pelo interesse que tomou junto dos superiores para que se introduzissem certas reformas urgentes, e pela sua piedade intensa. São desse tempo estas palavras: «Para mim, o dia em que eu não comungar, que os anjos do céu me levem para a comunhão eterna».
Alguns sacerdotes lhe ficaram devendo a perseverança da sua vocação, e todos nós que dele se abeirara receberam o influxo benfazejo da sua palavra quente e do seu exemplo vivo.
Escreveu no Seminário, para a revista «Lume Novo», que ajudou a fundar, alguns belos artigos, nos quais se revelou um admirável artista da pena. Um deles, por sinal um belo conto, ocorreu-me agora por causa da terminação «Accersitus ab Angelis» - chamado pelos Anjos.
Mas já antes escrevia. Escrevia, nas suas viagens de férias, o diário de bordo, só com esta finalidade: para depois o ler a uma rapariguinha paralítica, que lá na terra dele jazia numa cama e se deliciava com esta leitura. Já era o carinho pelos doentes e infelizes. O jornal «O Gaiato» foi depois o seu diário de bordo, mais ampliado e aperfeiçoado, dos vinte e sete anos da sua viagem de padre da rua, em demanda do porto - o Céu.
Começou por visitar pobres; passou depois a organizar colónias de férias para os gaiatos da baixa de Coimbra; fundou as Casas do Gaiato; criou o «Património dos Pobres» e incendiou o país nas labaredas desta grande paixão: o amor pelos pobres e desgraçados.
O «Correio de Coimbra» não esquece a honra que lhe deu o Padre Américo de nas suas colunas publicar as suas impressões desses primeiros anos de apostolado, depois reunidos nos volumes «Pão dos Pobres».
Descalço, e vestido apenas de batina, conforme sua vontade, baixou à sepultura o Padre Américo. Mas não morreu com ele a sua obra. A sua obra é imortal. O que fez está feito para a eternidade. E os seus companheiros, os Padres da Rua, saberão continuar. E quantos amaram o Padre Américo em vida continuarão a amá-lo no seu exemplo e na sua obra.
Só quando não houver em Portugal uma família sem lar, um lar sem pão, ou pão sem alegria, só então, por desnecessária, deixaria de subsistir a obra do Padre Américo.
Que descanse em paz, e que lá no céu, onde piamente esperamos já se encontre, continue a ser para todos os gaiatos e para todos os pobres, o Pai Américo./ N.P. [Correio de Coimbra, n. 1736, 26 Julho 1956, p.1-2].
Padre Manuel Mendes