
PÃO DE VIDA
Do Venerável Padre Américo
Continuação do número anterior
Artista das Palavras
Na sua vasta obra escrita, como grande escritor português do século XX, cristão e realista, pragmático, manifestou-se um grande artista das palavras, semeadas com largueza de mãos cheias de originalidade, em belos textos, dados à estampa em várias publicações, a saber: revista [ms.ª] Lume Novo; jornais Correio de Coimbra [colunas Sopa dos Pobres e Obra da Rua] e A Ordem [do Porto]; e especialmente no famoso quinzenário O Gaiato [desde 5-III-1944], que fundou, em Paço de Sousa, de início impresso na Casa Nun'Álvares e depois na Tipografia da Casa do Gaiato de Paço de Sousa [inaugurada em 16-VIII-1949]; cuja rica colecção do jornal em papel, preservada em arquivo, foi aí digitalizada e é património da Obra da Rua, estando acessível.
Sendo um Pai muito atento aos seus filhos, deixou incisivos apontamentos de muitos momentos marcantes e peripécias dos seus Rapazes, revelados especialmente na célebre coluna Isto é a Casa do Gaiato, do jornal O Gaiato, lido avidamente por muitos leitores. Estão publicados, para já, pela Editorial Casa do Gaiato, da Obra da Rua, em Paço de Sousa, onze títulos das suas obras, com várias edições: Pão dos Pobres, 4 vols. [Coimbra - 1941, 1942, 1943; Paço de Sousa - 1984], Obra da Rua [Coimbra, 1942], Isto é a Casa do Gaiato, 2 vols. [Paço de Sousa - 1950, 1951], O Barredo [Paço de Sousa,1952], Ovo de Colombo [Paço de Sousa,1954], Viagens [Paço de Sousa, 1954], Doutrina, 3 vols. [Paço de Sousa, 1956, 1977 e 1980], Cantinho dos Rapazes [Paço de Sousa, 1986], Notas da Quinzena [Paço de Sousa,1986], De como eu fui... [Paço de Sousa,1987], Correspondência dos Leitores [Paço de Sousa, 1988].
Sobre o jornal da Obra da Rua, de saída quinzenal obrigatória até ao fim do mundo [O Gaiato, n.1, 5 Março 1944] e com colaboração também dos seus Rapazes, considerando que vivia mais preocupado com o seu conteúdo e alcance, foi objecto de críticas literárias sobre formalismos nas páginas d'O Gaiato. Isto obrigou-o a um curioso Esclarecimento: É dito por aí que O Gaiato tem muitos erros de gramática e sobretudo de ortografia. Tem de ter. Eu fiz exame de primeiras letras mesmo na pontinha do derradeiro quartel do século XIX. Durante muitos anos, ocupei-me a ver terras e gentes. A seguir, aninhei-me num convento, onde aprendi um todo-nada de latim. Quando me propunha ficar, os frades deram-me carta de marcha. Bati à porta do então Bispo do Porto. 'Que não; já era velho e vinha do mundo'. Fiquei no de Coimbra, onde os cónegos mai-los doutores da igreja me deixaram passar com pena dos meus anos. Ora aqui está a origem dos erros conhecidos dos leitores e reconhecidos por mim. Que hei-de fazer agora? Ele há já tantos anos que caminho por esta valeta, que não poderia mudar o curso. Burro velho... [O Gaiato, n. 17, 15 Out. 1944].
Entretanto, ao ser notado pela profundidade e qualidade dos seus escritos, justificou-se bem. Eis: Costumo ser muito gabado pelos meus dotes (dizem) de escritor. Até de uma vez, em certo grupo, aonde estava zurzido com entusiasmo, foi-me concedido, ao menos, um título. Tem habilidade para escrever. Ora a verdade é que eu nunca dei fé de tal. As coisas saem-me da pena como o leite do peito das mães que amamentam. Os filhos é que o puxam [O Gaiato, n. 64, 10 Agosto 1946].
Segundo o P.e António Mendes Fernandes [1917†2016]: O estilo do Padre Américo, inconfundível, incisivo, nervoso, botava lume, subjugava. Era termo-cautério. Não podia ler-se distraidamente, com indiferença. Foi Padre Américo um dos maiores jornalistas do nosso tempo. E, sem dúvida, um génio do coração ['Um padre mendigo por amor', in Horizonte, ano III, n. 29, 1956, p. 93].
Sendo o Padre Américo uma personalidade tão rica, o Padre Carlos Galamba, seu sucessor, observou que a convivência da sua pessoa ou dos seus escritos revelam-no: artista da palavra que domina e constrói em estilo absolutamente original [A Porta Aberta, M.ª Palmira M. P. Duarte, 1967, p. 11].
É de reconhecer justamente que o Padre Américo conquistou um lugar cimeiro como jornalista e na literatura portuguesa, mas ainda não lhe foi dado o devido relevo na história literária e no ensino da Língua Portuguesa. Neste sentido, Zacarias de [de Sá] Oliveira afirmou: para bem das letras portuguesas, que ele tenha lá o seu lugar, o lugar que merece, conquistado por um domínio da frase directa, da frase que diz, escolhendo as palavras mais apropriadas, colhendo-as na fala popular, enriquecendo o léxico. Mais, as suas duas obras, a literária e a social, dão-se as mãos ['O Cantador', in Penafiel, n.1, 1972, p.32].
Entre outros, também o sábio investigador Jesué Pinharanda Gomes [1939†2019] escreveu com muita ousadia: o Padre Américo foi porventura o maior pedagogo da caridade e da fraternidade, e simultaneamente, o maior escritor e mais vivo estilista da literatura portuguesa depois de António Vieira, com a diferença de que ao conceptualismo pulpital e palaciano de Vieira, o Padre Américo propõe um estilo pitoresco e picaresco, o linguajar do povo tornado arte criacionista. Nenhum escritor português, nem mesmo Eça de Queiroz, se pode comparar ao escritor que foi o Padre Américo - o estilo feito vida, a vida popular feita estilo [O Pensamento Teológico em Portugal, sep. Theologica, Braga, 1991, p.79].
Tendo abordado de forma breve este tema biográfico fundamental, é de sublinhar que as vertentes Padre Américo - jornalista e escritor merecem uma abordagem mais exaustiva, à altura da grande riqueza e actualidade cristã da sua obra escrita, que não pode ser ignorada pela história da literatura portuguesa do século XX.
Padre Manuel Mendes