PÃO DE VIDA

De mãos abertas

De graça recebeste,

De graça dai [Mt 10,8]

Num tempo tão inquietante, de confinamentos e muitos padecimentos, vamos caindo mais na [vida] real quando percorremos vias-sacras de enfermos, pois há tantas vidas que são quaresmas permanentes. Ultimamente, sentimos como muito próximas uma grande aflição de doente no Hospital Padre Américo... E ainda uma visita a débil enferma que deu a sua vida alegre por crianças, neste mundo tão carente de beleza. Aconteceu num Lar de Irmãs doentes, emoldurado por jardim muito relvado e em que sobressai um belo canteiro de rosas. Nessa comunidade acolhedora, que suspendeu as visitas devida à pandemia, foi autorizado outro encontro sentido e emotivo de despedida a uma linda Rosa, de Elvas. Contemplámos o seu rosto franzino de dores e as mãos pequenas, enrugadas de anciã e mais sumidas por neoplasia, num encontro celebrativo da Unção e do viático para a viagem eterna, pois para Deus todos estão vivos! Logo depois e tão bem, ergueu as suas mãos abertas, bem à vista de testemunhas próximas, exprimindo um sorriso nos lábios, por esse belo encontro com Cristo crucificado e vivo, escondido, mas realmente presente! Desde esse momento de saudade, passámos a olhar cada vez mais para as mãos que se nos apresentam, mesmo sem as tocar!

Como nos contou, vem a propósito recordar que, num certo dia áspero, depois da II Guerra Mundial, em tempo de privações, esta boa alma, com afazer discreto de cerzir roupas, em Paço de Sousa, se encontrou com Padre Américo, que lhe perguntou: - Não tem frio?... Nos anos trinta e quarenta, socorrendo misérias em Coimbra, no seu jeito tão original de retratar pobrezas, revelou dolorosos lamentos. Sobre um caso exemplar, escreveu assim: Um dos garotos da Casa do Gaiato, adorável como todos eles, declarou há dias que desejava ir dali para o céu, onde não há, disse, fome nem frio, males estes do seu conhecimento, aos quais deseja furtar-se. Esta criança de sete anos, sem dar fé nisso, afirma um dogma da Igreja, e declara um direito individual e imprescindível, qual é o de viver na terra sem fome nem frio [Pão dos Pobres, II, 1942, p.114].

Neste Advento de céus cinzentos, tempestuoso e muito tristonho, para amenizar chegou notícia e imagem de um retrato lindo do Venerável Padre Américo, da autoria do conceituado pintor tirsense Avelino Leite. No âmbito eclesial já realizou belos trabalhos; e, entre nós, vem depois de Uma história do Pai Américo [com Padre José Alfredo], para marcar com a sua expressão artística cristã, simples e profunda, o 1.º aniversário da declaração da heroicidade das virtudes do Servo de Deus Padre Américo, pelo Papa Francisco, que culminou com sucesso as primeiras etapas [diocesana e romana] de um percurso decisivo nesta Causa de Beatificação, que tanto se deseja na Igreja em Portugal, orando e testemunhando a presença de Deus no mundo. A caridade não morre nunca! Esta obra de arte cristã diz muito a quem sentiu e admira o seu bafo, e tem continuado o seu legado espiritual tão valioso. Tornou-se um desafio bem conseguido de aproximação artística ao rosto e carisma de Padre Américo, com uma paleta experiente nas abordagens religiosas. Na sequência de outros artistas que procuraram traçar ou moldar o seu rosto confiante e sorridente, é também obrigatório olhar para os seus óculos, ampliando os seus olhos ternos em fácies de jovem. Sobressaem cores expressivas e suaves de filhos seus, cobertos pela sua larga capa e por entre as suas mãos abertas de Pai Meco!

Sendo um retrato feliz de Pai-Américo, é ocasião para avivar alguns sinais artísticos no seu intenso itinerário biográfico, entre Portugal e África. Na sua extensa obra escrita, de um realismo vivido, sem fantasias ou divagações, foi tecendo elogios, ao concretizar sonhos de justiça, a várias expressões artísticas que o encantaram, v.g.: os belos edifícios de granito, lançados na Casa do Gaiato de Paço de Sousa, obras do Arq.º Teixeira Lopes e de canteiros rijos; as moradias simples do Património dos Pobres; as tradicionais Alminhas, como nos caminhos de Portugal; os painéis de azulejos, nas diversas Casas, como o retábulo da Capela de Paço de Sousa, que é emblemático - em O Meu Testamento. Ora, eis: Ele é o índice. Se quiseres saber. Se quiseres procurar. Se queres penetrar no segredo da Obra, vai ao índice. Segredo Divino! [O Gaiato, n. 127, 8 Jan. 1949]. Nesse painel, é retratado o resumo do juízo final: O que fizeste ao mais pequenino dos meus irmãos, a Mim o fizeste [Mt 25, 40].

E ainda um belo vitral - o pelicano - que ilumina do alto a sua campa rasa nessa mesma Capela, definindo tão bem o seu caminho em direcção à Luz, ao dar a sua vida, como confessou: Suei sangue. Sei o que é ser mártir. Não afirmo que naqueles tempos de prova Cristo Jesus me tivesse aparecido e falado, como tantas vezes a Paulo. Não posso dizer. Mas senti o Seu bafo [O Gaiato, n. 363, 8 Fev. 1958].

Quando há diálogo entre a Igreja e as artes, resplandecem centelhas do Artista divino nas obras feitas por mãos humanas. Em inúmeras revoluções, guerras e invasões, tem havido muitas pilhagens e destruições de obras de arte, enquanto outras heroicamente têm sido salvas da fúria humana e vencido séculos. Das telas espantosas dos pintores, mais ou menos conhecidos, ao labor incansável dos escritores monásticos, essas são vivas expressões contra a tirania do tempo e o esquecimento dos homens, na linha do Padre António Vieira. Foi Dostoiévski [1821-1881] quem escreveu: a beleza salvará o mundo. Segundo a nossa fé e de acordo com os Santos Evangelhos, a humanidade foi salva num único Sacrifício na cruz, com o derramamento do sangue de Cristo. O II Concílio do Vaticano, numa Mensagem aos artistas [8-XII-1965], deixou bem claro o que importa mesmo dizer: O mundo em que vivemos tem necessidade da beleza e para não cair no desespero. A beleza, como a verdade, é a que traz alegria ao coração dos homens, é este fruto precioso que resiste ao passar do tempo, que une as gerações e as faz comungar na admiração.

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P.S. - In Memoriam

Pelas 7:07h do dia 6 de Dezembro, Domingo gelado e chuvoso, tocou o telemóvel de serviço: o Padre José Alfredo deu-nos a triste notícia do passamento do Padre Manuel António, no Hospital Padre Américo - Penafiel, com 86 anos. Nesta hora de grande perda, mas com esperança na vida eterna, justifica-se plenamente uma breve nota biográfica. O Padre Manuel António da Silva Pereira nasceu a 20 de Janeiro de 1934, em S. Tiago de Bougado [na Trofa], filho de Lino da Silva Pereira e Elisa Dias da Silva. Concluída a sua formação no Seminário Maior do Porto, foi ordenado Presbítero em 4 de Agosto de 1957, na Sé Catedral do Porto, pelo Bispo do Porto D. António Ferreira Gomes. Sendo marcado pelo carisma do Padre Américo, que conheceu pessoalmente, sentiu-se chamado e foi enviado para servir a Igreja na Obra da Rua. Assim, de início, colaborou na Casa do Gaiato de Paço de Sousa com o Padre Carlos Galamba. Depois, em Novembro de 1963, com um grupo fundador, partiu para Angola como responsável pela Casa do Gaiato de Benguela, que foi inaugurada em 5 de Janeiro de 1964, no Vale do Cavaco. Após a descolonização, as Casas do Gaiato de Benguela e de Malanje [fundada por Padre Telmo] foram nacionalizadas. Ainda conseguiu manter-se em Benguela, colaborando na Paróquia da Sé, mas teve de regressar a Portugal. Depois da sua vinda, também serviu a Obra da Rua como seu director [1987-1992]. Como as autoridades angolanas restituíram essas Casas do Gaiato e a pedido dos Bispos, o Padre Manuel António voltou novamente em Maio de 1992, para retomar a Casa do Gaiato de Benguela; na qual se manteve como responsável. De saúde precária, deixou essa Casa com o Padre Arnaldo Joaquim; e, no início de 2020, regressou a Portugal para repousar dos seus trabalhos. Ultimamente, viveu no Calvário [em Beire]. O Padre Manuel António colaborou no jornal O Gaiato com regularidade. Na sua vida de Padre da Rua, ao serviço dos pobres, é notória a sua entrega especialmente às crianças e aos adolescentes abandonados, em Angola: os seus filhinhos! Foi um homem de Deus e devoto de Nossa Senhora, cheio de espiritualidade, que no quotidiano e nos encontros de Padres chamava sempre para a Eucaristia e a Liturgia das Horas. Na véspera da Imaculada Conceição, da Capela dessa Casa, saiu o seu funeral para a igreja paroquial da sua terra natal, onde foi celebrada Missa de corpo presente, pelas 10 horas, com a participação de familiares, presidida pelo Bispo do Porto D. Manuel Linda, e concelebrada por vários Padres da Obra da Rua e ligados a essa Paróquia. Que descanse em paz! Sempre grato, pelo Baptismo com o mesmo nome, em Cristo Jesus.

Padre Manuel Mendes