PÃO DE VIDA

Aos cuidadores dos enfermos

Na recta final de 2020, o mundo em geral e cada um de nós vive em crescente pânico devido à Covid-19, desesperando-se por uma vacina para esta pandemia assustadora. Num cenário internacional preocupante, Portugal também está em estado de emergência, com medidas de contenção. Em concelho de risco muito elevado e tempo de sofrimento para muitas pessoas, pelos que padecem e partem, o nosso pensamento leva-nos inevitavelmente ao encontro desta realidade dolorosa e a acolher palavras do Papa Francisco, com inteira justiça: os médicos e os enfermeiros são os heróis anónimos desta pandemia. Quantos de vós deram a vida para estar perto dos doentes! Obrigado pela proximidade, obrigado pela ternura, obrigado pelo profissionalismo com que cuidam dos enfermos.

Neste tempo de grande ansiedade e insistentes apelos aos cuidados sanitários, há então redobrada oportunidade para assinalar o bicentenário do nascimento de Florence Nightingale [1820-1910]. Assim, para enquadrar alguns traços biográficos desta mulher, bem formada e culta, que popularizou o exercício da Enfermagem, no século XIX, importa dar alguns exemplos de bem-ser e fazer nas artes de cuidados dos enfermos, de alto valor (humano, espiritual e social), pois sempre tiveram e têm lugares muito especiais nos percursos históricos das ciências da saúde e da Igreja, cujo paradigma é o Bom Samaritano.

Na Idade Média, o patriarca S. Bento determinou que os mosteiros cuidassem dos enfermos e que prestariam contas no tribunal de Deus acerca do modo como tivessem tratado os pobres. Como outros conventos beneditinos, é exemplificativo que o mosteiro de Paço de Sousa possuía uma enfermaria para pobres e peregrinos, e um horto botânico com boticário. Sendo Padre Américo conhecedor dessa história milenar, pois no Vale do Sousa têm raízes os seus avoengos, escreveu com acerto e confiança: A Igreja! A força irresistível da mãe! Quem é que ensinou a ler? Quem deu pão? Quem curou feridas? Quem arroteou? Como gosto de mergulhar nestas verdades eternas da história! Vinte séculos não a perderam. Outros tantos não a perdem! A Mãe! [O Gaiato, n. 185, 31 Mar.1951].

Das mais belas e vivas páginas da Igreja, entre tantas vidas entregues pelo próximo, sirvam de exemplos as missões de multidões de consagrados pelo mundo além e ao longo da História, v.g.: Ordem Hospitaleira de S. João de Deus [† 1550], Ordem dos Ministros dos Enfermos [1590, S. Camillo de Lellis], Filhas da Caridade [1633, S. Vicente de Paulo e Santa Luísa Marillac]. No nosso tempo e entre muitos, é edificante o exemplo de José Ambrosoli [1923-1987], grande médico e missionário comboniano que deu a sua vida pelos doentes, no Uganda, e disse bem: Deus é amor, há um próximo que sofre e eu sou o seu servo.

Nos anais dos povos e culturas, registaram-se pestes vastas e mortíferas. Entre nós, acenamos um estudo, em especial no Porto, com uma base de dados de 6.700 notícias, revelando os conhecimentos médicos e farmacêuticos da segunda metade do século XIX e início do XX - As epidemias nas notícias em Portugal: cólera, peste, tifo, gripe e varíola, 1854-1918 [M.ª Antónia Almeida, 2014]. A gripe provocada pelo vírus infuenza, de 1918 a 1920, infectou cerca de 500 milhões de pessoas. Em Portugal, nota-se que os conhecimentos dessas épocas eram avançados, citando-se alguns médicos, v.g.: Bernardino António Gomes [1768-1823], Luiz da Câmara Pestana [1863-1899] e Ricardo Jorge [1858-1939]. O Conde de Samodães [1828-1918], sábio e empenhado católico, na memória As Irmãs da Caridade nos hospitais [Porto, 1887, p.30], diz assim: O enfermeiro não tem tranquilidade, porque de contínuo está no campo de batalha. O inimigo é a doença e as armas para atacá-lo são a vigilância, a constância e a caridade, que sintetiza em si todos os sentimentos com que o lutador deve entrar em combate; combate que não é de algumas horas; campanha que não é de

algumas semanas ou meses; mas incessante, sem tréguas.

A par da cultura inglesa, sendo despachante na firma The British Central Africa, no Chinde - Moçambique [1907-1921], Padre Américo fez um elogio de Florence Nightingale:

Faz agora precisamente um século que uma mulher inglesa, por vocação, começou a ter pena do estado dos doentes, mesmo quando entregues a bons médicos, em bons hospitais. É que naquele tempo não era conhecida a enfermagem, nem faziam falta enfermeiros. Qualquer um jeitoso. Qualquer assalariado. Nos Albergues dos pobres a regra era: se de homens, o menos bêbado; se de mulheres, a menos bêbeda. O doente aceitava os serviços. Não se sabia de coisa melhor. Vem a guerra da Crimeia e os soldados de Sua Majestade a rainha Victória morreram em tal número que os jornais de Londres começam a falar. Desconhecia-se a enfermagem. Não havia enfermeiros. Era a sepultura. Chega a hora. A hora de Deus não vem tarde nem cedo. Vem. É aquela. Não se discute. Por detrás do esplendor Victoriano, surge uma luz. Florence Nightingale apresenta-se. Ela vai fazer a revolução social. Eis a chave: 'Enfermagem é uma arte e, como tal, requer devoção e uma preparação tão forte como a de qualquer pintor ou escultor. Pois que tem que ver uma tela morta ou o mármore frio com um corpo vivo templo do Espírito Santo? Não digo uma arte, mas sim a mais delicada das artes'.

Como os senhores estão vendo, esta Mulher tinha necessariamente de ser tomada por indesejável e até perigosa, em vários sectores da vida social do tempo. Tinha, sim. Porquê? Por causa da sua mensagem de verdade e de justiça. Por via de regra, ontem como hoje, os que mais empregam aqueles termos receiam vê-los em prática. A Enfermeira Inglesa teve de suportar o formidável peso da inércia: deselegâncias, incompreensões, ciladas, calúnias - o cálice! A burocracia é que foi! E da pior: Altas patentes militares não queriam que a Enfermeira curasse. Mas ela era artista do Divino. Nada de humano a faria sucumbir. Venceu. O samaritano vence sempre! A breve trecho, os críticos convenceram-se que a Enfermeira era da Nação. Os Curados, beijando a sombra dela, extinguiram o zelo dos apagadores. A Enfermeira venceu. Uma Comissão de Londres declara: ocupe-se esta mulher e levanta 50.000 libras esterlinas, das quais 9.000 foram cobertas por soldados! Hoje, tudo quanto se sabe e diz de enfermagem é o fruto natural de uma lição de 90 anos - que tantos durou a Enfermeira protestante [O Gaiato, n. 216, 7 Junho 1952].

Florence Nightingale nasceu a 12-V-1820, em Florença - Itália, no seio de uma rica família britânica, recebendo o nome dessa cidade. Em 1821, a sua família mudou-se para Inglaterra. A sua educação foi vasta e abrangente. Aos 17 anos, segundo escreveu no seu Diário, sentiu um chamamento [calling] de que não estava destinada a uma vida comum. Em 1845, seus pais recusaram o seu pedido para prestar cuidados aos enfermos em Salisbury. Porém, em 1848, conseguiu ensinar crianças pobres em Westminter, o que a despertou para a pobreza. Em 1849, embarcou numa viagem cultural à Grécia e ao Egipto. De regresso, visitou a obra do pastor Theodor Field, em Kaiserswert - Alemanha, e decidiu dedicar a sua vida à enfermagem, mesmo com oposição familiar, escrevendo: agora sei o que é viver e amar a vida. Entre 1851 e 1854, Florence visitou hospitais no Reino Unido e na Europa, v.g.: o Hospital Lariboisière, em Paris, com arquitectura para a entrada de luz e ar fresco. Entre 1854 e 1856, deu-se a guerra da Crimeia, entre russos e otomanos, que envolveu outras potências, como a França e a Inglaterra. De forma surpreendente, Florence foi destacada para o Hospital militar de Scutari, com cerca de 4 mil feridos e precárias condições, como superintendente de enfermeiras voluntárias, algumas católicas, das quais disse: São as mais verdadeiras cristãs que jamais vi. Organizou a lavandaria e a cozinha; e o serviço era exaustivo, percorrendo as enfermarias de noite com uma lanterna - the lady with the lamp! Em 1860, foi fundada a Nighthingale School for Nurses, anexa ao St. Thomas's Hospital, considerada a primeira escola profissional de enfermagem. Escreveu mais de 15 mil cartas e cerca de 200 publicações, v.g.: Notas sobre hospitais [1858], Notas sobre Enfermagem [1859]. Depois dos 80 anos, foi escrevendo sobre Enfermagem e cuidados de saúde. Faleceu a 13 -VIII-1910, com 90 anos, em Londres, e foi enterrada em East Wellow - Hampshire.

Para amar e respeitar a vida, nas modernas catedrais da dor e noutros sítios, ajuda o exemplo de vida cheia de uma mulher de esperança, que lutou para salvar milhares de vidas no meio de burocracias e tantos ratos, na guerra da Crimeia. Eis um desejo seu, tão actual: O primeiro requisito de um hospital é que ele jamais deveria fazer mal ao doente.

Padre Manuel Mendes