PÃO DE VIDA
Sim à vida
Da cabeceira, pende uma cruz com Jesus Crucificado. Está ali tudo. Está ali a Promessa.
O Crucificado representa; o pequenino doente é. É Jesus.
Padre Américo
Jesus teria mais de trinta anos [c. 28 d.C.]. Com os pecadores do seu povo, no rio Jordão, foi ao encontro de João Baptista [Mc 1,9], um profeta novo que denunciava as injustiças sociais. Tinha deixado o seu trabalho de pobre artesão [tekton] - carpinteiro [Mc 6, 3], em Nazaré, na Galileia, vivendo entre os humildes do seu povo, em que aprendeu a olhar os pobres desse tempo, próximo de grandes cidades, como Séforis, Tiberíades e Tiro. Sendo judeu marginal e trabalhador itinerante, conheceu as dores das gentes expulsas das suas terras. Em tempo de crise, no contacto com as necessidades do seu povo, partilhou das suas dores e ouviu os gritos dos homens e mulheres dessa região. Viu e experimentou os males de muitas pessoas, como a fome, as doenças e a opressão. Sem ter onde reclinar a cabeça [Mt 8, 20], Jesus percorria as cidades e as aldeias, ensinando nas suas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando todas as enfermidades e doenças. Contemplando a multidão, encheu-Se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor [Mt 9, 35-36]. Finalmente, foi a Jerusalém para anunciar o Reino de Deus [Mc 11], como presença de Deus para todos, em especial os pobres e os enfermos. Porém, certos poderes instituídos (políticos e religiosos) tiveram receios e condenaram-n'O à morte, de cruz. Na sua paixão, como crucificado, em extremo sofrimento, gritou: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? [Mc 15, 34]. Contudo, não morreu como abandonado, pois junto à cruz de Jesus estavam, de pé, sua mãe e a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas, e Maria Madalena [Jo 19, 25]. No Calvário, este é um momento decisivo da História da Salvação e que dá muito que pensar. Na verdade, a cruz de Cristo é o resumo por excelência da vitória de Deus sobre os males e os sofrimentos humanos, no mundo - toda a nossa glória está na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo [Gal 6, 14]. Certo é que O seu caminho continuou: Não vos assusteis. Buscais a Jesus de Nazaré, o crucificado? Ressuscitou; não está aqui. Vede o lugar onde o tinham depositado. Ide, pois, e dizei aos discípulos e a Pedro: 'Ele precede-vos a caminho da Galileia' [Mc 16, 6-7]. E está sempre connosco até ao fim dos tempos [Mt 28, 20].
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Em cada tempo e lugar do mundo, para o serviço à vida humana, nomeadamente as pessoas feridas e abandonadas, que padecem com as suas dores, por tantos males (físicos, psicológicos, morais e espirituais), Jesus tem as mãos, os olhos e os ouvidos de cada ser humano que se entrega pelo seu próximo. À pergunta sobre quem é o meu próximo, Jesus respondeu com a parábola do Bom Samaritano [Lc 10, 30-37], que deixa o seu caminho para socorrer um homem doente, cuidando das suas feridas e consolando-o nas suas dores. Nesta sequência e pela sua pertinência, na memória de S. Camilo de Léllis, 14 de Julho, é de notar que veio a lume a Carta Samaritanus Bonus - sobre o cuidado das pessoas nas fases críticas e terminais da vida, da Congregação para a Doutrina da Fé, que seguimos.
O sofrimento, longe de ser removido do horizonte existencial da pessoa, continua a gerar uma inexaurível pergunta sobre o sentido do viver [II Concílio do Vaticano - Const. Past. Gaudium et spes, 7-XII-1965, n. 10]. A solução desta dramática interrogação não poderá jamais ser oferecida somente à luz do pensamento humano, já que o sofrimento contém a grandeza de um específico mistério que somente a Revelação de Deus pode desvelar [João Paulo II - Carta Apost. Salvifici doloris, 11-II-1984, n. 4].É notório, a propósito, o que escreveu Padre Américo sobre esta questão tão séria: A Dor é um mistério necessário e divino. Sem efusão de sangue, não há beleza moral, nem remissão de pecados. Tudo quanto há no homem de grande, sublime e santo, vem do sofrimento! Ai, de quem nunca sofreu, que esse nunca viveu! [Pão dos Pobres, III, 1943, p. 35].
Todos os cuidadores dos doentes - profissionais de saúde, familiares, pessoas próximas e capelães - têm uma enorme missão a respeito dos enfermos, quando se aproxima o limite da morte como parte da condição humana. Cada doente necessita não somente de ser escutado, mas de perceber que o próprio interlocutor sabe o que significa sentir-se só, abandonado, angustiado diante da perspectiva da morte, da dor da carne, do sofrimento que surge [...]. Num discurso sobre Os tratamentos de suporte vital e estado vegetativo [20-II-2004], o Papa João Paulo II afirmou: Reconhecer a impossibilidade de curar, na perspectiva próxima da morte, não significa todavia o fim do agir médico e dos enfermeiros. Exercitar a responsabilidade para com a pessoa doente significa assegurar-lhe o cuidado até ao fim: «curar se possível, cuidar sempre».
Dos vários cuidados aos doentes, fazem parte necessidades de assistência, alívio da dor, necessidades emocionais, afectivas e espirituais. Como demonstrado pela mais ampla experiência clínica, a medicina paliativa constitui um instrumento precioso e irrenunciável para acompanhar o paciente nas fases mais dolorosas, sofridas, crónicas e terminais da doença. Os assim chamados cuidados paliativos são a expressão mais autêntica da acção humana e cristã de cuidar, o símbolo tangível do compassivo estar junto a quem sofre.
Sobre o acompanhamento pastoral e o apoio dos sacramentos dos doentes, ainda a Carta Samaritanus Bonus lembra que o momento da morte é um passo decisivo do homem no seu encontro com Deus Salvador. A Igreja é chamada a acompanhar espiritualmente os fiéis nesta situação, oferecendo-lhes os recursos sanantes da oração e dos sacramentos. Ajudar o cristão a viver tal momento em um contexto de acompanhamento espiritual é um acto supremo de caridade. Nenhuma pessoa deveria morrer na solidão e no abandono - como afirmou o Papa Bento XVI, em discurso sobre o tema Junto ao doente incurável e ao moribundo [25-II-2008]. Com os sacramentos da Igreja - Penitência, Unção dos Enfermos e o viático da Eucaristia para a vida eterna - o doente vive a proximidade de Cristo que o acompanha para a casa do Pai [Jo 14, 6] e o ajuda a não cair no desespero, sustentando-o na esperança, sobretudo quando o caminho se faz mais árduo.
Diante do sofrimento humano, não se tem compaixão por uma pessoa abandonando-a na sua solidão e dando-lhe a morte. Se um membro sofre, com ele sofrem todos os membros [1 Cor12, 26]. Na Carta Encíclica Fratelli Tutti [3-X-2020], do Papa Francisco, são recordados alguns compromissos de grande importância religiosa e civilizacional, expressos no Documento sobre a fraternidade humana [4-II-2019], v.g: Em nome da alma humana inocente que Deus proibiu de matar, afirmando que qualquer um que mate uma pessoa é como se tivesse morto toda a humanidade e quem quer que salve uma pessoa é como se tivesse salvo toda a humanidade [n. 285]. Quando as dores se vão tornando insuportáveis e indizíveis, na angústia e no desânimo, é de evitar ou diminuir o sofrimento humano, recorrendo aos instrumentos médicos e paliativos ao alcance para minorar as dores, cuidando bem, e estando muito próximo das pessoas que sofrem, acompanhando-as com muito amor e compaixão.
Do Bom Samaritano, os cristãos e outras pessoas de boa vontade aprendem o cuidado com o doente terminal e obedecem assim ao mandamento conexo ao dom da vida: «respeita, defende, ama e serve a vida, cada vida humana!» [João Paulo II - Carta Enc. Evangelium vitae, 25-III-1995, n. 5]. Sobre o bom exemplo de um samaritano, de viagem entre Jerusalém e Jericó, que viu e se aproximou de certo homem caído, chegando ao pé dele e enchendo-se de compaixão, Jesus contou os passos a seguir: ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. Deste modo, no cuidado misericordioso com o próximo, o mandato é simples e radical: Vai e faz tu também o mesmo [Lc 10, 37]. Estive doente e vieste visitar-Me [Mt 25, 36]. Afinal, o evangelho da vida é a boa notícia da compaixão e misericórdia!
Do Testamento espiritual de Santa Bernadette Soubirous [†16-IV-1879], eis: Por esse corpo miserável que Vós me destes. Pelas minhas carnes em putrefacção, pelos meus ossos com cáries, pelos meus suores, pela minha febre, pelas minhas dores surdas e agudas. Graças, ó meu Deus! E por esse anseio que Vós me destes para o deserto da aridez interior. Pela vossa noite e pelos vossos relâmpagos, pelos vossos silêncios, mais uma vez, graças por tudo! Por vós ausente e presente, graças, ó Jesus!
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Em 23 de Outubro, contrariando a vontade expressa de 95 mil subscritores, o Parlamento português não aprovou um referendo sobre a eutanásia, para então legislar em matéria de tamanha importância. Assim, também nesta questão fulcral da vida humana, Portugal vai-se afastando da sua matriz cristã. É assunto muito grave para todos nós, neste tempo de infeliz crescendo da pandemia covid-19. Enquadrando no cenário internacional este retrocesso civilizacional, contam-se por 10 países [em 193] em que foi legalizada a eutanásia [Holanda, Luxemburgo, Bélgica, Austrália (estado de Vitória), Colômbia, Uruguai] e o suicídio assistido [Suíça, Suécia, Alemanha e 5 estados dos EUA, mais os países atrás enunciados]. O II Concílio do Vaticano é bem claro: Essas práticas negam os confins éticos e jurídicos da autodeterminação do sujeito doente, obscurecendo de maneira preocupante o valor da vida humana na doença, o sentido do sofrimento e o significado do tempo que precede a morte. De facto, aborto, eutanásia e suicídio voluntário corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem do que os que padecem, injustamente, e ofendem gravemente a honra devida ao Criador [Gaudium et spes, n. 27].
Padre Manuel Mendes