PÃO DE VIDA
Filhos de pai incógnito
Não há pais incógnitos, nem filhos ilegítimos.
Os pais é que o são. Estes é que devem legitimar.
Padre Américo
Envolvidos no turbilhão das correrias da vida actual, cada vez mais global, neste tempo sob pressão e efeitos da covid-19 e de outras pestes e focos de guerras destruidoras, vive-se naturalmente preocupado com situações difíceis que tocam a todos. Com a agitação do mundo tão paradoxal que nos rodeia, em que telescópios potentes vão desvendando o espaço, nesta Terra em perigo ecológico e sempre a girar, surgem ao minuto notícias de sinal negativo na sua maioria, ao alcance da mão. Neste 13 de Outubro, com menos peregrinos em Fátima, por exigências sanitárias, em especial os mais frágeis sentem-se receosos com o crescendo da pandemia, que exige maior responsabilidade social na sua prevenção e contenção. É importante, pois, estar atento aos sinais do nosso tempo.
Na manhã soalheira desse dia de Outono, ao descer uma calçada e olhar para as folhas caídas no chão, que darão verduras nos sulcos do arado, avistámos mais uma vez uma raposa sorrateira perto do jardim Pai Américo, em busca de sustento que escasseia nos montes. Jesus foi bem claro sobre a ordem da Criação e na sua entrega por todos: As raposas têm tocas e as aves do céu ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça [Mt 8, 20]. No que se refere à célula-base da sociedade, no mundo ocidental e nomeadamente em Portugal, é pertinente que se vão analisando e debatendo sempre e aprofundadamente algumas vertentes essenciais da humanidade (v.g., transmissão da vida, vida humana nascente e no ocaso, e família), para o crescimento humano pessoal equilibrado e o desenvolvimento social sustentado, rasgando horizontes saudáveis para as gerações actuais e vindouras. Numa sociedade plural, nada vai sendo como dantes, com alguns fenómenos sociais pós-modernos a provocar outras configurações dos agregados familiares e populacionais: aumento dos divórcios, práticas de procriação medicamente assistida e igualdade de género. Estas questões têm feito esbater a chamada família tradicional, vindo ao de cima outras mentalidades minoritárias e realidades divergentes do modelo em que nascemos e crescemos. Apesar de campanhas e leis em sentido contrário, a visão cristã da família e a opção preferencial pelas pessoas mais frágeis são sempre faróis da missão evangelizadora, em diversos povos e culturas, ao longo dos tempos.
Na última década, é significativo que em Portugal o número de crianças sem indicação de paternidade aumentou. Tem havido também registos sem indicação do nome de mãe. Em 2017, a maioria dos casos de bebés sem essa indicação do nome de pai registou-se no concelho de Lisboa, seguindo-se a Amadora e o Porto. Enquanto noutros tempos, era um ferrete ser filho de pai incógnito, parece-nos que se têm promovido socialmente os pais incógnitos, utilizando v.g. dadores anónimos. Porém, doar gâmetas e doar sangue não são a mesma coisa.
Com a investigação e a comercialização crescente em matéria de reprodução humana, certas técnicas têm permitido que muitos casais [homem e mulher] concretizem o seu desejo de maternidade/paternidade. Neste âmbito, colocam-se muitas questões éticas relacionadas com a dignidade da pessoa humana, ao surgirem procedimentos de respeito pela vida humana e conjugal, mas também na disseminação de tecnologias condenáveis. Centros públicos e privados dispõem de várias técnicas de procriação medicamente assistida [PMA] - como inseminação artificial intra-uterina, fertilização in vitro, micro-injecção citoplasmática. Nos seus fundamentos morais, a ética cristã da dignidade humana proíbe a sua instrumentalização, considerando que a identidade genética de cada ser humano é constituída a partir do momento em que há fusão dos gâmetas - feminino e masculino; e o embrião humano, em processo contínuo de vida individualizada, sem cortes - num devir biológico, psicológico, social, cultural, ético e espiritual - mesmo sendo passível de manipulação, não dá para tal o seu consentimento. Assim, não pode haver dúvida que cada pessoa humana é única e irrepetível, devendo ser tratada como um fim em si mesma e não como um meio. Isto significa que as técnicas de reprodução humana com as suas implicações não devem ser vistas só em função dos pais. Neste âmbito muito delicado e com opiniões divergentes, importa considerar o que afirmou Jacques Testard, responsável pela primeira bebé proveta em França [Amandine, n. 24-2-1982]: [...] decidi fazer uma paragem neste caminho. Não para travar a investigação que nos ajude a melhorar o que estamos a fazer, mas para travar aquela investigação que tem por objectivo uma mudança radical da pessoa humana, ali onde a medicina procriativa está em conexão com a preditiva. Note-se que o primeiro bebé-proveta do mundo chama-se Louise Brown [n. 25-7-1978, Bristol - Inglaterra]. Há limites éticos e legais que devem ser impostos às ciências e tecnologias, no respeito pela dignidade humana, pelas suas implicações familiares e no futuro da espécie humana. É de incrementar, sim, a experimentação para fins terapêuticos, contribuindo para o bem dos novos seres humanos.
Da breve análise supra, em matéria de transmissão da vida humana, verifica-se que vai acontecendo uma revolução ética, nas últimas décadas, com algumas consequências determinantes na vida humana, familiar e social. Um sinal negativo é o crescendo de orfandade, até por via laboratorial. É de questionar não se garantir o direito de saber quem são os progenitores com algumas técnicas da Procriação Medicamente Assistida, quando há anonimato dos dadores.
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Desde 1977, é contraditório que a lei portuguesa não permite o registo de crianças sem indicação do nome do pai, podendo o Ministério Público ordenar a realização de testes de ADN para averiguação da paternidade.
Temos à mão o Código Civil de 1966 [com notas de Adriano Vaz Serra], em exemplar do espólio sobrante do Dr. José Marques da Cruz Almeida, magistrado católico, sendo um grosso calhamaço, carregado de anotações e acrescentos. Como amostra para o tema em epígrafe, apenas dois artigos: 1801 - Presume-se legítimo o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe [...]; 1824 - São ilegítimos todos os filhos não considerados legítimos nos termos dos artigos 1801 e seguintes. Comparando os dois regimes de investigação da paternidade, o vigente entre 1967 e 1978, e o decorrente da entrada em vigor do Decreto-Lei n. 496/77, até 1978, só excepcionalmente podia ocorrer o reconhecimento judicial, sendo que o princípio fundamental da versão do Código Civil de 1966 era o da proibição-regra da investigação da paternidade, ao passo que no Código Civil de 1977 o princípio é o da permissão-regra [Francisco Pereira Coelho - Filiação. Coimbra, 1978]. Certo é que a paternidade e a maternidade representam sempre uma referência essencial de cada pessoa humana, enquanto suporte extrínseco da sua própria individualidade - o direito de pertencer ao pai e à mãe cujo filho/filha é [ver reconhecido o pai e a mãe].
Na defesa da paternidade e maternidade responsáveis em Portugal, desde os anos trinta do século XX, por direito de serviço na defesa dos últimos, é de notar a voz profética de Padre Américo. Na sua tarimba perseverante em sítios miseráveis - junto dos mais pobres, enfermos, reclusos e rapazes da rua - ajudou a matar a fome e ainda a dar cama, em casa decente. Eis um retrato vivo e eloquente da sua vida de samaritano: Os lugares clássicos da piolhice, que em todas as terras têm seus nomes e na de Coimbra se chamam Bairro das Latas, Quinta do Poço, Arco Pintado, Páteo dos Lázaros, Lojão, Casa do Inferno - são zonas tenebrosas, conhecidas somente de fachada, que lá dentro ninguém vai, a não ser a polícia! Eu também lá vou, por outras razões./ O garoto ateima que eu seja mãe e chama-me para tudo./ Se algum companheiro adoece, os outros passam palavra e levam-me onde ele habita. Chegado que sou à porta, vai uma chusma deles atrás de mim. Vão tristes. São solidários. O amigo está doente./ O catraio da rua adoece por comer mal. A tudo ele resiste - frio, sol, aguaceiros, noitadas, sarna, tinha, maus tratos - tudo. Menos à fome lenta./ Entro. A mãe não está em casa; pai não tem. Um deles procura fósforos, acende um candeeiro e mostra - olhe ali! Este ali é o sítio que os espera, após a debandada das colónias [Obra da Rua, Coimbra, 1942, p. 37-38].
Chegados aqui, tem de ficar para outra vez o essencial das palavras fortes de Padre Américo no I Congresso Nacional de Protecção à Infância, em Novembro de 1952, em Lisboa, nas quais denunciou a situação dos filhos de pai incógnito e apontou algumas soluções. A propósito, de um juiz americano [na Califórnia], Leon Rene Yankwich [1888-1975], é conhecido um pensamento próximo da epígrafe: Não há filhos ilegítimos, só há pais ilegítimos. É seguro que Padre Américo não copiou da América, até no caso do Padre Edward Joseph Flanagan [1886-1948], com as Boy's Town [Cidades dos Rapazes, Omaha - EUA, 1917]. Veremos isto também noutra oportunidade, até para desfazer um equívoco recorrente: a célebre frase Não há Rapazes maus é do irlandês Padre Flanagan, cuja fase diocesana de beatificação foi concluída em 2015, tendo o seu processo seguido para Roma.
Padre Manuel Mendes