PÃO DE VIDA
Pelo regresso a Nazaré
Eu gostaria de ser recordado como
o Papa da Família.
S. João Paulo II
Vivemos num tempo de encruzilhadas e em ritmos alucinantes, com medos recorrentes e o mundo na palma das mãos, pelo progresso das novas tecnologias. Conscientes da fragilidade humana e dos graves problemas ecológicos, seria importante atender ainda aos desafios de ideologias desestruturantes da família natural, para elevar bem alto os valores perenes do Evangelho e regressar sempre aos pilares fundamentais da vida humana, em especial a família, constituída a partir de mãe e pai. Actualmente, há um pluralismo de ideologias sobre a família, eticamente anti-cristãs, que se têm imposto mais no mundo ocidental com a modernidade e a pós-modernidade, nomeadamente desde meados do século XX. Em matéria de vida humana nascente, veja-se que a França poderá aprovar o aborto até aos nove meses de gestação... O filósofo francês Paul Ricoeur dizia: a democracia que não respeita valores ético-morais corre o risco de não ter outro critério a apresentar além dos seus próprios procedimentos [revista Esprit, Jan.1991]. O pedagogo suíço Johann Pestalozzi, octogenário [1746-1827], no seu leito de morte, despediu-se assim: Ó filhos, permanecei muito unidos e procurai a vossa felicidade no tranquilo ambiente da família.
Os mestres antigos diziam: Lectio non repetita, lectio nulla - É inútil a lição que não for repetida. Não é de esquecer, pois, a extraordinária lição de vida do Papa João Paulo II, tendo-se celebrado o centenário do seu nascimento. Entre os grandes pastores da Igreja e no conturbado século XX, a sua figura gigantesca foi uma das personalidades mais marcantes e influentes do final do segundo milénio, sendo canonizado em 27 de Abril de 2014. Não se apaga da nossa memória a sua presença no Porto a 15 de Maio de 1982, em que foi saudado por enorme multidão e disse: Abri as vossas famílias a Cristo trabalhador. A presença do Senhor ilumine as vossas casas, far-vos-á compreender melhor a vossa dignidade de trabalhadores e a vossa missão na família.
Karol Jósef Woytila nasceu a 18-V-1920, em Wadowice, na Polónia, filho de Emília Kaczorowska e Karol Woytila. Foi o mais novo de três irmãos e cresceu órfão de mãe desde os 8 anos; e cedo ficou sem a sua família nuclear próxima - pai e irmãos também falecidos, conforme disse: Eu não estive presente na morte de minha mãe, nem do meu irmão e nem na do meu pai. Aos vinte, eu já tinha perdido todos os que amava. Na II Guerra Mundial, durante a ocupação nazi da Polónia, desde Setembro de 1939, foi operário numa mina de calcário e numa fábrica da indústria química; em Outubro de 1942, foi para Cracóvia, como seminarista clandestino, e sobreviveu ao atropelamento por um camião alemão, em 29 de Fevereiro de 1944. Em 1 de Novembro de 1946 foi ordenado Presbítero; e depois nomeado Bispo-Auxiliar de Cracóvia, em 4 de Julho 1958.
No seu pontificado, durante mais de 26 anos [16-X-1978; 2-IV-2005], entre os temas a que deu maior atenção, destaca-se a questão incontornável da Família - em mudanças aceleradas, por mentalidades diferentes e desviantes do projecto divino para o ser humano. Na abertura da Exortação Apostólica Familiaris Consortio [22-XI-1981], afirmou: A família nos tempos de hoje, tanto e talvez mais que outras instituições, tem sido posta em questão pelas amplas, profundas e rápidas transformações da sociedade e da cultura. Sobre as pessoas sem-família, sublinhou: Infelizmente, há no mundo muitíssimas pessoas que não podem referir-se de modo algum ao que poderia definir-se em sentido próprio uma família. Grandes sectores da humanidade vivem em condições de enorme pobreza, em que a promiscuidade, a carência de habitações, a irregularidade das relações, a falta extrema de cultura não permitem praticamente poder falar de verdadeira família. Há outras pessoas que, por motivos diversos, ficaram sós no mundo. Também para todos estes há um bom anúncio da família. [...] Àqueles que não têm uma família natural, é preciso abrir mais as portas da grande família que é a Igreja [n. 85].
No Ano da Família, na Carta às Famílias Gratissimam sane [2-II-1994], insistiu numa importante via da Igreja no mundo: A Família, sendo única e irrepetível, como irrepetível é cada homem; uma via da qual o ser humano não pode separar-se [n. 2]. E teve de lembrar que através da comunhão de pessoas, que se realiza no matrimónio, o homem e a mulher dão início à família. Com a família está ligada a genealogia de cada homem: a genealogia da pessoa. A paternidade e a maternidade humana estão radicadas na biologia e, ao mesmo tempo, superam-na. [...] A geração é a continuação da Criação [n. 9]. Como sinal negativo no sentido individualista, ou seja, uma liberdade sem responsabilidade, contrária à civilização do amor, manifestam-se os filhos, privados do pai ou da mãe e condenados a serem, de facto, órfãos de pais vivos [n.14].
Em atenção aos sinais dos tempos e na continuidade do Magistério eclesial sobre a célula-base da sociedade e igreja doméstica, com a Exortação Apostólica pós-Sinodal Amoris Laetitia [19-III-2016], sobre o amor na família, o Papa Francisco denunciou também esta ferida: O sentimento de ser órfãos, que hoje experimentam muitas crianças e jovens, é mais profundo do que pensamos. [...] O enfraquecimento da presença materna, com as suas qualidades femininas, é um risco grave para a nossa terra [n. 173]. Uma sociedade sem mães seria uma sociedade desumana, porque as mães sabem testemunhar sempre, mesmo nos piores momentos, a ternura, a dedicação, a força moral [n. 174]. Um pai com uma clara e feliz identidade masculina, que por sua vez combine no seu trato com a esposa o carinho e o acolhimento, é tão necessário como os cuidados maternos [n. 175]. Diz-se que a nossa sociedade é uma sociedade sem pais. [...] O problema dos nossos dias não parece ser tanto a presença invasora do pai, mas sim a sua ausência, o facto de não estar presente [n. 176]. O papel paterno é crucial também para o desenvolvimento equilibrado dos filhos na infância e na adolescência. A ausência paterna tem impacto negativo em crianças e adolescentes, sendo que estão em maior risco para problemas de comportamento. Se o pai está ausente, outros modelos podem ocupar esse vazio, com probabilidade de não serem propriamente exemplares. Para além disto, sabendo que os vínculos do novo ser humano com os seus pais [mãe e pai] se iniciam no ventre materno, note-se ainda que a maternidade e a paternidade não são realidades exclusivamente biológicas, segundo o aforismo - pai e mãe é quem cria.
A Convenção dos Direitos da Criança, em 1989, definiu o término da infância nos 18 anos. Nestas últimas décadas, no processo emancipador da criança, com ganhos substanciais na diminuição da mortalidade infantil e no aumento da escolaridade, será que a adolescência e a própria infância se desvaneceram no desenvolvimento da pessoa humana?
De passagem, há filmes com interesse na temática infantil, como: Aniki Bobó [1942]. do cineasta Manoel de Oliveira [1908-2015], que colocou a criança no centro da narrativa; e em especial para a Obra da Rua - Não há Rapazes maus [1948], de Eduardo Maroto e Armando Vieira Pinto [mas é desconhecido o seu paradeiro...].
Sobre o profundo desejo natural de ser concebido e crescer numa família feliz, inscrito no ADN humano, este belo testemunho de Santa Teresa de Calcutá [1910-1987]: Um dia, encontrei uma menina na rua e levei-a para o abrigo que temos para as crianças. Demos-lhe roupa limpa e fizemos tudo para que se sentisse feliz. Ao fim de algumas horas, a menina fugiu. Procurei-a, mas não a encontrei em lado nenhum. Ao fim de alguns dias, voltei a encontrá-la e levei-a de novo para nossa casa. Fugiu de novo. Encontrei-a mais tarde com a mãe debaixo de uma árvore. Naquele dia tinha colocado duas pedras no chão e estava a cozinhar e a fazer uma comida especial para a sua filha. Ambas sorriam. Perguntei à menina: - Por que não queres ficar connosco? Tinhas tantas coisas bonitas em nossa casa! Ela respondeu: - Não podia viver sem a minha mãe. Ela gosta muito de mim!
Na Igreja em Portugal, nos séculos XIX-XX, houve uma plêiade de figuras históricas e carismáticas exemplares, muito empenhadas na caridade e na justiça social, focadas na miséria humana, com incidência na pobreza das famílias e nas marginalidades, v.g: Beata Maria Clara [†1899], Maria Luísa Holstein [†1909], D. António Barroso [†1918], Padre Cruz [†1948], Padre Abel Varzim [†1964], Padre Alves Brás [†1966], Maria Carolina Gomes [†1969] e Padre Américo [†1956], em que se manifestou vivamente a proximidade e o contacto com Cristo eucarístico e nos pobres, seguindo o mandato do Mestre: O que fizestes a um dos mais pequeninos, a Mim o fizestes. O seu itinerário de vida foi conduzindo a uma evolução fonética e semântica, gravada para sempre na medula dos seus filhos, chamando-o assim: Pai Américo. Por isso, no seu Testamento [1950] deixou esta vontade: O padrão da Obra é a família; vida familiar. Eis a escola natural da sólida formação do homem. Tudo quanto seja regresso a Nazaré, é progresso social cristão.
Neste Outono de incertezas pessoais, sociais e económicas, enquanto se vai aguardando ansiosamente cura para a covid-19, em que já morreram um milhão de pessoas, o nosso mundo vai sofrendo muito com a nova pandemia e outras pestes e guerras. Muitas pessoas vão partindo sem ter junto de si quem mais amam. Por prevenção e respeito com os outros, com máscara e desinfectante, sujeitos a isolamentos, e apelando aos confinamentos e distanciamentos, o que será das pessoas e famílias doentes, e dos que sobrevivem sós e na pobreza, principalmente sem mãos para os curar e agarrar? Valha-nos Deus!
Padre Manuel Mendes