PÃO DE VIDA

Padre Américo e a pediatria

Crianças robustas, de mães robustas

e aí temos um mundo aonde todos cabem.

Padre Américo

Neste vale Dueça, tem havido perda de população infantil e jovem, e manifesta-se um frágil tecido empresarial, pois ainda se está à espera que a linha de caminho-de-ferro funcione, noutros moldes, depois de ficar parada uma década e sem os seus carris.... Nesta comunidade eclesial de ajuda às periferias e promoção humana, na zona do Pinhal Interior, da Beira Litoral, houve uma manhã de cuidadosa enfermagem de proximidade, com cuidados de saúde primários, específicos, orientada pelos médicos responsáveis pela saúde pública, num gesto louvável do Agrupamento de Centros de Saúde do Pinhal Interior Norte. Geralmente, a assistência especializada na saúde infantil vem acontecendo no excelente Hospital Pediátrico de Coimbra, onde os Rapazes são muito bem acompanhados pelos profissionais de saúde. Continua-se em tempo da traiçoeira pandemia Covid-19, com contágios alarmantes. A propósito, são de inteira justiça as palavras do Papa Francisco aos cuidadores de saúde: Frente a esta pandemia que abala o mundo inteiro, expressamos a nossa gratidão aos médicos, enfermeiras, pessoal de saúde e associações de voluntários empenhados em enfrentar esta emergência. Que o Espírito Santo, fonte de todo o bem, nos ajude a reflectir sobre a precariedade da vida humana. [...] O cuidado é regra de ouro do nosso ser humano e traz consigo saúde e esperança.

No horizonte que a nossa vista alcança, a sul, os olhos enchem-se com a imponente serra da Lousã e evidencia-se o campanário branquinho da igreja de Vila Nova, terra mirandense em que viveu [em 1934-1937] o médico e escritor Miguel Torga [Adolfo Rocha], na qual começou a escrever com regularidade o seu monumental Diário. É desse tempo [7-11-1934] esta nota: Quem saberá por aí uma palavra para estes momentos? Uma palavra para um médico dizer a esta mãe, que entregou à vida um filho vivo e recebeu um filho morto. Daí se ter lamentado [5-2-1937]: É escusado. Ou se lavram estes montes a instrução e a higiene, ou então não vale a pena um médico perder a vida aqui. Cerca de sete anos após o fim da I Guerra Mundial, em Fevereiro de 1925, o Bispo de Coimbra, D. Manuel Luís Coelho da Silva, deu à estampa um precioso opúsculo - A Vida das Criancinhas, com três capítulos: I - Higiene geral das criancinhas; II - Alimentação das criancinhas; III - Do Baptismo das criancinhas. O Prelado conimbricense pôs o dedo numa ferida vergonhosa: é um escândalo ver a mortalidade infantil atingir cifras espantosas sem que a consciência nacional se insurja contra isso e procure evitá-la. [...] E apontou caminhos: A situação demográfica do nosso país é um dos problemas mais imperativos e angustiantes. [...] É urgentemente necessário o ensino da higiene infantil, assim como a assistência ante-natal e a assistência às criancinhas. Somente assim conseguiremos gerações sãs, gerações fortes. É esta uma obra cristã e verdadeiramente patriótica. [...] Aos sacerdotes aconselhava: Ao ensino procurai juntar a assistência pelas Obras. A Igreja procurou sempre envolver as criancinhas numa atmosfera de ternura e amor inspirados pelo exemplo e doutrina do Deus Menino. Já no IV século eram frequentes entre os cristãos os brefotrofios, espécie de maternidades ou de creches onde se recolhiam as crianças recém-nascidas, então tão frequentemente expostas pelos pagãos gregos e romanos. Em Outubro de 1925, com 38 anos, Américo Monteiro de Aguiar deu entrada no Seminário de Coimbra, sempre devoto do Pobre de Assis. Seguiu com passos firmes no Senhor da vida e junto dos mais pobres, não na Universidade, mas nas ruas e tugúrios de Coimbra - na escola da vida cristã, da Caridade, com predilecção pelos enfermos, pequeninos e pobres. Este desabafo é de um padre ferido, recoveiro dos pobres, mas não vencido: Comecei por uma toca no Largo da Trindade [em Coimbra], onde habitava uma mulher prostituída, com quatro filhos de outros tantos pais, a qual mulher falecia pouco depois à minha beira, roída da doença e do pecado, a pedir perdão e a perdoar! Em matéria de miséria social, a minha estreia foi perfeita e o meu serviço bem acabado [Pão dos Pobres, III, 1943, p. 76].

Em 1948, depois da II Guerra Mundial, em Portugal, foi criada a Sociedade Portuguesa de Pediatria [SPP], por iniciativa de Manuel Cordeiro Ferreira, que encontrou vários apoios - de médicos credenciados: Castro Freire [Lisboa], Almeida Garrett [Porto] e Lúcio de Almeida [Coimbra].

Sendo preocupante a saúde das crianças em Portugal, entretanto, deu-se um verdadeiro acontecimento pediátrico, que teve lugar em Lisboa, em Novembro de 1952: O I Congresso Nacional de Protecção à Infância, que constituiu, sem dúvida, um notável acontecimento no nosso meio técnico. Durante 3 dias, cerca de 4 centenas de pessoas, entre as quais se encontravam médicos, professores, sacerdotes, juristas, trabalhadores sociais, etc., puderam apresentar as suas opiniões e fazer as críticas que julgaram oportunas, num ambiente de compreensão e interesse. Este Congresso pediátrico, de reflexão em conjunto de responsáveis pela saúde da criança em Portugal, numa perspectiva de saúde global, foi um momento significativo da história da Pediatria em Portugal e nele também participou o Padre Américo, como palestrante convidado. Nesse ano, faleceu Maria Montessori [1870-1952], médica e pedagoga italiana, que afirmou [em 1937]: Uma educação capaz de salvar a humanidade não é tarefa pequena. Envolve o desenvolvimento espiritual do ser humano, o aprimoramento do seu valor individual e a preparação dos jovens para compreenderem o tempo em que vivem.

No artigo Ecos do Congresso [O Gaiato, n. 230, 20 Dez., 1952], Padre Américo comentou esse evento dedicado às crianças: Eram nove da manhã e ninguém diria que tanta gente havia de estar, pela inconveniência da hora. Mas estava. Tanta, que eu pedi à Mesa para trocar o nome e em vez de Congresso chamar uma Assembleia Cristã aos ali reunidos; ia falar um padre. Cristãos das catacumbas. Um só pensamento, uma só fé, um só baptismo, um só Deus e uma só dor pelos que sofrem. Não era um congressista; era um padre. Todos temos por preceito, disse, amar a criança desde o ventre da mãe; qualquer mãe. Amar é dar de comer. Continuando, revelei àquela Assembleia Cristã que de cada cem rapazes que nós mantemos, sessenta e cinco mostram ter passado muita fome no ventre de suas mães. [...] Como remediar o mal? Dando de comer às grávidas, disse. Como, perguntei à ilustre Assembleia? Comendo nós menos, tornei a dizer. Aqui houve um grande, longo e geral bater de palmas. Eu antes queria silêncio...

Médicos era[m] a grei do Congresso. Não admira. Pela sua acção, eles são os homens que melhor conhecem e por isso mesmo mais se afligem com a sorte da Criança.

[...] Amar é dar de comer. Não seria mais acertado? Que mundo belo, aonde cada criança fosse um sorriso? E a quem prestam aqueles milhões, se estes sorrisos não são?!

Quando eu visitava doentes nos hospitais, não era raro dar com uma criança deitada na mesma cama com um homem! Eu fugia apavorado pela porta fora. Não sei de maior penúria ou desmazelo do que isto!

E se houvesse na nossa terra um hospital com muitas crianças e muitas flores e muitos brinquedos - só para crianças e para flores e para brinquedos! [...]

Crianças robustas, de mães robustas e aí temos um mundo aonde todos cabem. Contente-se com menos o que tem de mais e o milagre dá-se. O Mestre ensinou-nos como do pouco se faz muito e deu de comer às multidões. Dê-se à Mãe os precisos e ela em sua casa defende, protege, alimenta, supre. Só ela, a Mãe, sabe mastigar o que seu filho come. Mais ninguém.

Não sabemos até onde irão as conclusões do Congresso. Elas são muitas porque muitos os aspectos da vida da Criança. Eu cá tenho esperanças. Cuido que da palavra vai proceder a acção. E desde já se afirma como uma coisa nova: ao que me consta, não fechou com o costumado banquete.

Neste marcante Congresso pediátrico, reconhecido como um momento histórico de reflexão e inovação na saúde da criança, em Portugal, pelas teses então apresentadas, o Padre Américo tratou dos filhos de pai incógnito. Como este tema não perdeu actualidade, segue-se a apresentação das suas palavras de clamor pela justiça, registadas nas respectivas actas, publicadas cinco anos depois. No nosso tempo, há sinais preocupantes de uma sociedade de crescente orfandade, pelo aumento de progenitores incógnitos.

Padre Manuel Mendes