PÃO DE VIDA

Bairros de lata e Covid- 19

Aos meninos da Cova da Moura

e milhões de estrelas.


Poetas fazem livros.

Mártires fazem casas.

Antes quero ser mártir.

Padre Américo

Um bairro de lata é um aglomerado de construções precárias e habitações pobres, de génese ilegal, sem as infra-estruturas fundamentais, localizado na periferia de centros urbanos e normalmente habitado por pessoas carenciadas. Infelizmente esta chaga humana está disseminada por vários continentes e também se encontra na sociedade portuguesa, surgindo em vários contextos históricos e situações geográficas e sociais, v.g.: conflitos, depressões económicas, migrações e marginalidades. Neste sentido, uma das doenças visíveis de qualquer sociedade encontra-se nos bairros de lata.

Nos bairros de lata abrigar-se-ão cerca de mil milhões de pessoas - uma em cada sete pessoas da Terra. Nomeadamente nas grandes metrópoles mundiais, encontram-se zonas periféricas mais ou menos extensas que padecem desta grave doença social, sendo enormes focos de tensão suburbana, v.g.: Bombaim, Nairobi, Cidade do México... E Rio de Janeiro, que se transformou em Agosto num autêntico cenário de guerra, com traficantes de um gangue a invadirem uma zona de facção rival, nas favelas de S. Carlos.

Nos séculos XIX e XX, na história urbana dos continentes americano e europeu, os bairros degradados [slum], com grande densidade populacional, foram um fenómeno comum de miséria social. As duas grandes guerras mundiais [1914-1918 e 1939-1945] foram horrores sucessivos, com consequências humanas e sociais muito graves.

A miséria habitacional foi uma ferida que também Padre Américo sentiu verdadeiramente como um lugar importante de intervenção da Igreja, em Portugal e no seu tempo [anos 30 - anos 50], pois procurou chamar a atenção para este grande problema social e ajudando centenas de famílias pobres em meados do século XX - com a chama do Património dos Pobres. Depois, enveredou pelo auxílio à autocontrução. Assim escreveu, com acerto cristão: Reparar bem na ordem: Casa. Pão. Evangelho. Não vá a gente pretender pregar o Evangelho aos que não têm casa nem pão. Cautela. Menos ricos, para haver menos pobres, e que cada um guarde os seus tostões.

Nos anos 60 e 70, aconteceram as sangrias forçadas para a guerra colonial em África e da emigração, maioritariamente para a Europa, em que muitos portugueses deixaram a suas terras, com viagens a salto e sobrevivendo em condições precárias - bidonville, bem retratados em França por Gérard Bloncourt. No pós-25 de Abril, deu-se o fenómeno dos retornados; e, em Lisboa, na área de Lisboa existiam cerca de 100 mil barracas.

Este quadro habitacional da Capital foi traçado desta forma: A região de Lisboa registou um elevado crescimento demográfico na segunda metade do séc. XX, derivado de movimentos migratórios de áreas rurais (a partir da década de 50), do regresso dos retornados das antigas províncias ultramarinas africanas (1975-76) e de imigrantes provenientes dos PALOP (a partir de meados da década de 80). Este aumento populacional traduziu-se numa demanda na procura de habitação e na respectiva incapacidade de absorver essa mesma procura. Como consequência, verificou-se a generalização de tecidos urbanos indiferenciados e bairros de génese ilegal na periferia de Lisboa, entre os quais o da Cova da Moura [Luís Freitas - Influência do desenho urbano na insegurança da cidade: Uma proposta para o bairro da Cova da Moura, Lx.: UTL-IST, Maio 2011, p.13].

Em Portugal, enquanto se têm multiplicado os condomínios de luxo e se atraem especuladores imobiliários, a questão dos bairros de lata não se tem enfrentado de forma concertada e abrangente como prioridade política e social, embora se notem durante décadas várias alternativas de autarquias e alguns programas de realojamento para resolver alguns problemas graves, como: Programa Especial de Realojamento, Porta 65, 1.º Direito. Contudo, exclusão social, marginalidades e comportamentos cívicos errados vão persistindo, também por escassez de investimentos em verdadeira educação social e pessoal para a cidadania e comunitária. Nestes contextos sociais problemáticos, a cada passo, surgem manchetes noticiosas sobre guetos degradados, pois acontecem certas explosões sociais com sinais negativos de violência e criminalidade. As áreas críticas urbanas são rastilhos de revoltas, sendo aglomerados populacionais de sobrelotação e segregação.

De facto, sobretudo em subúrbios de grandes cidades, como Lisboa e Porto, encontram-se situações de miséria habitacional que se manifestam problemáticas e incómodas. Na área do Porto, há focos de tensão em alguns bairros sociais como: Aleixo, Cerco e Pinheiro Torres. Na área metropolitana de Lisboa, entre outros, são problemáticos bairros como: Quinta da Fonte e Quinta do Mocho (Loures), Cova da Moura (Amadora), Bela Vista (Setúbal) e Princesa (Seixal). Nos anos 70 e 80, na sua maioria, nestes bairros juntaram-se moradores vindos de outros bairros que foram demolidos e imigrantes oriundos das antigas colónias portuguesas. Em 2019, na área da Grande Lisboa, contavam-se 13 bairros de lata, com mais de 12 mil famílias e 1800 delas vivendo em barracas. Os piores casos encontram-se em concelhos como Seixal, Almada, Loures, Amadora e Odivelas.

Para além desta chaga habitacional e social, o arrendamento tem sido encarado como uma opção de habitação por muitas pessoas em Portugal. Em Agosto, foram referenciadas 3663 casas para arrendar até 800 euros, em especial nestes distritos: Porto, Lisboa, Braga, Faro e Coimbra.

Com relativo conhecimento de causa, in loco, desde há uma dúzia de anos, em especial de famílias fragilizadas, seguem-se brevemente alguns ligeiros traços dum bairro no Alto da Cova da Moura, espicaçados por mais encontros recentes, por mor de vários apelos para ajuda e promoção familiar. Temos verificado a predominância da alegria das crianças e de população jovem, necessidades habitacionais e familiares, o uso intenso da rua como lugar de estadia e dificuldades de circulação. A Cova da Moura é um bairro classificado como degradado, que se situa no concelho da Amadora, com origem na Quinta do Outeiro e génese ilegal. Sendo dos mais antigos enclaves [com 16,5 ha] de população migrante na área metropolitana de Lisboa, os primeiros residentes viveram em barracas, vindos da pobreza rural; e, nos anos 70, acolheu pessoas oriundas de Cabo Verde, a que se foram juntando outros migrantes das antigas colónias portuguesas em África. A proximidade de Lisboa e o fácil acesso à rede de transportes permitiu à população residente mais acessibilidade ao emprego e a outros serviços

Entre outros estudos, foi objecto de dissertações de Arquitectura há cerca de uma década, com contributos de muito interesse. Eis algumas das questões colocadas: Até que ponto a autoconstrução é um acto cultural? Num bairro que se apresenta multi-étnico, que diferentes manifestações culturais podemos encontrar associadas ao universo construído? Na verdade, este bairro constitui um dos maiores bastiões da cultura PALOP no nosso país, verificando-se aí uma grande diversidade de manifestações culturais que passam não só pela excentricidade morfológica do espaço urbano e das habitações que o definem, mas pela culinária, pela dança e pela língua, entre outras. [Marco Godinho - Cova da Moura: Bairro histórico em evolução. Coimbra: FCT-UC, Dez.2010, p.3,121]. Porém, sendo uma área crítica urbana, confronta-se com diversos problemas de saneamento, estabilidade construtiva e de exclusão social, económica e urbana, as quais fomentam a imagem negativa e a insegurança existente no bairro [Freitas, p.12].

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O Covid-19 tem atingido populações fragilizadas em regiões desenvolvidas e países em desenvolvimento, economicamente, em especial os mais velhos, débeis e profissionais de saúde. Todavia, os bairros de lata constituem preocupantes incubadoras desta pandemia e bombas-relógio, considerando a sua sobrelotação populacional e carências múltiplas: água potável, alimentos, higiene, cuidados de saúde e saneamento básico. São necessidades básicas que deverão sempre ter prioridade e respostas urgentes, no planeamento e decisões dos governantes, acompanhadas por informações credíveis e alargadas, para evitar surtos infecciosos graves e crescentes perdas de vidas humanas. Uma pandemia global exige uma resposta global, como: divulgação massiva e respeito de regras preventivas, acessibilidade de cuidados de saúde e de materiais de protecção, gratuidade da vacinação contra o Covid-19. O Papa Francisco renovou o apelo para se cancelar a dívida dos países mais frágeis no contexto da pandemia Covid-19 e sublinhou que a exploração do sul do planeta provocou um enorme deficit ecológico, cujos países também são usados indevidamente e em massa para receber resíduos tóxicos.

Pe. Manuel Mendes