PÃO DE VIDA

De Santo António

A Diocese de Coimbra vive um Ano Santo jubilar, comemorativo dos 800 anos do martírio [Marraquexe, 16-I-1220] dos cinco discípulos [Berardo, Otão, Padro, Acúrsio e Adjuto] enviados por Francisco de Assis ao norte de África para anunciarem o Evangelho. Este acontecimento impressionou vivamente Fernando Martins, jovem cónego regrante, nascido em Lisboa [c. 1191-1192?] e que se mudou do mosteiro de S. Vicente para o célebre mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, sendo entretanto ordenado presbítero [1220?]. A propósito da discussão desta data e daquele testemunho marcante, que o terá feito desejar mais o burel franciscano, temos à mão [com dedicatória à Irmã Estrela do Menino Jesus seu velho tio António de Vasconcelos] o interessante estudo A Vocação missionária de Santo António de Lisboa [Coimbra, 1933], do qual transcrevemos esta explicação: Acabavam de se estabelecer, aí por 1218 ou 1219, num sítio ermo, denominado os Olivais, próximo de Coimbra, uns pobres fradinhos franciscanos. [...] Um dia entraram em Coimbra as Relíquias dos cinco frades menores, que em Fevereiro anterior tinham derramado o seu sangue, sofrendo o martírio pela fé de Cristo, em Marrocos. Foram recebidos triunfalmente, com grande pompa e devoção, e depositados na igreja conventual de Santa Cruz. Inflamou-se D. Fernando em religioso entusiasmo à vista dos restos daqueles, que pouco tempo antes tinham passado por Coimbra, tão pobres e humildes, e que agora, segundo a fé lhe dizia, viviam gloriosos com Cristo eternamente./ Eis a faísca eléctrica, que produziu a explosão. Já anteriormente estava assente e resolvida a mudança de hábito; esta ocorrência, agora, determinou-o a dar o passo imediatamente. Depois, com passagem por Marrocos, rumou do eremitério dos Olivais a Itália: Estava pois em Assis no Domingo do Espírito Santo, 30 de Maio de 1221, e lá se conservou os oito dias que durou o Capítulo./ Ali teve a consolação de ver, conhecer e venerar o patriarca e fundador da Ordem, S. Francisco [† 3-X-1226], há pouco regressado da sua missão à Palestina. Em Junho, retirou-se ao eremitério de Montepaolo; e em 1222 começou o seu apostolado da pregação... Morreu em 13 de Junho de 1231, em Arcela, às portas de Pádua. Foi canonizado em 30 de Maio de 1232, na catedral de Espoleto, pelo Papa Gregório IX. O Papa Leão XIII deu a Santo António - de Lisboa, de Coimbra e de Pádua - o título de Santo de todo o mundo!

Frei Junípero

O frade menor Frei Junípero foi um dos primeiros companheiros de Francisco de Assis, que o recebeu em 1210. Foi um homem de profunda humildade, de grande fervor de alma e caridade. Muito estimado pelo Poverello de Assis, dele terá dito: Quisera o Senhor, meus irmãos, que eu tivesse uma floresta inteira de tais juníperos. Na Legenda de Santa Clara, a propósito do seu trânsito final [1194-1253], Tomás de Celano referiu o seguinte: Consolou-a sobremaneira a presença de Frei Junípero, notável menestrel do Senhor que costumava ter, acerca de Deus, palavras cheias de fogo. Clara, com grande jovialidade, perguntou-lhe se sabia alguns ditos novos a respeito do Senhor. Começou ele a falar e da sua boca saíam ditos fervorosos, quais chispas flamejantes e a virgem de Deus encheu-se de consolação com as suas palavras. Em Junípero de Asís - Compañero de San Francisco [1993], Daniel Elcid, O.F.M., numa nota biográfica vem isto: O nosso irmão Junípero faleceu em 6 de Janeiro de 1258 ; havia entrado na Ordem em 1210; foram quarenta e oito anos de puro franciscanismo primitivo. Foi sepultado na igreja de Santa Maria de Aracoeli, em Roma

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No itinerário biográfico de Américo Monteiro de Aguiar, é notória a sua devoção por S. Francisco de Assis, marcada pela sua admissão na Ordem dos Frades Menores, em que chegou a receber o hábito franciscano, em 14 de Agosto de 1924, no Convento franciscano de Vilariño de la Ramallosa, na Galiza. No Seminário Episcopal de Coimbra, a sua admiração por S. Francisco de Assis manifestou-se de tal forma que inspirou muito a sua vida de seminarista e Presbítero, chegando a contagiar os seus companheiros e a assinar os seus artigos sob o pseudónimo Frei Junípero, na revista [manuscrita] Lume Novo - dos alunos do Seminário Maior de Coimbra - do n. 1 [8 de Dezembro de 1926] ao n. 13 [Junho de 1930]. Em Lume Novo - n. 2 [Fev. 1927], comemorativo do sétimo centenário da morte de S. Francisco de Assis, vem o seu artigo franciscano Mansões de paz. Desde a publicação em livro desses belos textos [Padre Américo: Frei Junípero no Lume Novo, org. Henrique Manuel Pereira, Coimbra, 2015], tivemos conhecimento da reintegração no Arquivo do Seminário de Coimbra de alguns números onde se encontra colaboração de Américo Monteiro de Aguiar, a saber: n. 10 - Junho 1929; e n. 12 - Abril 1930. Ainda não foi localizado o n. 5 - Fevereiro 1928.

Frei Genebro

A possível influência literária em Padre Américo do escritor Eça de Queiroz [1845-1900] - consagrado autor português do realismo-naturalismo - é referida em artigo do Padre Euclides de Oliveira Morais, da diocese de Coimbra, na rubrica Facetas de uma Vida [O Gaiato, n. 388, 24 Jan. 1959, p.1]: Outro contemporâneo, o Professor José Augusto de Miranda, diz-me que toda a prosa dele lembra Eça de Queiroz. Na citada rubrica, mais tarde, foi recolhido um testemunho de Manuel Rodrigues da Silva Veiga, em que é acrescentado o seguinte: Recordo-me de o meu referido cunhado, um dia, lhe ter perguntado: - Como é que o Padre Américo adquiriu esse seu estilo tão vivo, tão original, tão directo e tão enérgico?/ Resposta dele:/ - Lendo só Eça de Queiroz [O Gaiato, n. 1094, 15 Fev. 1986, p. 4].

A ligação efectiva entre a família de Eça de Queiroz e Padre Américo foi selada com um marco histórico para a Obra da Rua: em 24 de Junho de 1954, foi assinada, na Comarca de Paredes, a escritura de doação da Quinta da Torre, em Beire [Paredes], dos descendentes dos Condes de Resende [por Luís Osório, de Penamacor], em que a Casa do Gaiato de Beire foi destinada para Lar agrícola e o Calvário para abrigo de doentes. Na cronologia da vida de Eça de Queiroz, vem referido que, em fins de Maio de 1892, Eça visitou, com a cunhada Benedita, Beire e Santa Cruz do Douro - Tormes, de A Cidade e as Serras [1901]. Isto mesmo nos foi testemunhado por Padre Baptista, em especial, a sua presença na granítica varanda da citada Quinta, em Beire.

Ainda testemunhámos a amizade recíproca entre D. Maria da Graça Salema de Castro e a Obra da Rua, como verificámos na correspondência trocada com meu pai, Júlio Mendes, bem como numa deslocação à Quinta de Vila Nova, em Santa Cruz do Douro, para uma celebração Eucarística presidida por Padre Carlos, na capela dessa emblemática quinta queiroziana. Sobre a senhora D. Maria da Graça, que conseguiu instituir a Fundação Eça de Queiroz [em 1990], convém dizer que foi casada com o Eng. Manuel Pedro Benedito de Castro [1917-1978], neto de Eça de Queiroz. De facto, depois da morte de Eça, em Paris, a viúva - D. Emília de Castro Pamplona Resende - e os filhos foram residir para a casa da Granja, que depois foi comprada por um dos filhos - José Maria Eça de Queiroz. Dois dos filhos de Eça - António e Alberto - não tiveram descendência. Mas, os outros dois - Maria e José Maria - tiveram filhos: Maria [1887-1970] veio viver para a Quinta de Vila Nova em 1916 e teve dois filhos, uma menina [†] e um menino - o referido Manuel Pedro, que veio a casar com D. Maria da Graça [1919; 6-IX-2015]. Essa Quinta, em Santa Cruz do Douro [Baião], calhou em partilhas, em 1892, à esposa de Eça de Queiroz, D. Emília; e, após a sua morte, passou para a filha Maria.

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O estilo de vida franciscano influenciou muito também a literatura medieval, v.g.: a Crónica da Ordem dos Frades Menores (1209-1285) [manuscrito do século XV, publicado em 1918, por José Joaquim Nunes - † 20-VII-1932], na qual se encontra um episódio célebre - a lenda do pé do porco, que inspirou um conhecido conto de Eça de Queiroz - Frei Genebro. Neste tema, é de referir o filme Francesco - giullare di Dio [Roberto Rosselini, 1950], em que foram encenados alguns episódios das Florinhas de S. Francisco e da vida de Frei Junípero.

O conto Frei Genebro foi publicado, pela primeira vez, em Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro - Brasil, em 28 e 29 de Março de 1894. Jaime Cortesão era de opinião que Eça foi buscar o tipo e o episódio central do conto a uma das fontes contemporâneas dos companheiros mais íntimos do Santo [Francisco] - I Fioretti - certamente aquela onde melhor se guarda em sua fragância viva e primitiva, com inexcedível encantamento, a história de S. Francisco de Assis e de seus discípulos [Eça de Queiroz e a questão social, Lx., 1949, p.114]. E a leitura de Eça de Queiroz teria sido feita da tradução francesa de I Fioretti, da qual terá retirado o nome Genebro - tradução próxima de Genièvre [em francês]. Porém, acontece que a Vita di Fratre Ginepro foi depois incorporada como apêndice em I Fioretti.

O narrador queirosiano descreveu Frei Genebro como um discípulo amigo de Francisco de Assis, reconhecido como modelo de Cristianismo autêntico, por ter vivido de forma exemplar os ensinamentos de Jesus.

Começa assim este conto interessante: Nesse tempo ainda vivia, na sua solidão das montanhas da Úmbria, o divino Francisco de Assis - e já por toda a Itália se louvava a santidade de Frei Genebro, seu amigo e discípulo./ Frei Genebro, na verdade, completara a perfeição em todas as virtudes evangélicas [Eça de Queirós - 'As histórias - Frei Genebro', in Contos, Lx.: IN-CM, 2009, p. 273]. Eis a descrição de uma cena observada por Frei Genebro, que encontrou o irmão Egídio abandonado e agonizante, encolhido em farrapos e definhado na sua cabana, manifestando-lhe um último desejo: Gemendo, arrepanhando para o peito as folhas secas em que jazia, como se fossem dobras dum lençol, o pobre ermitão murmurou:/ - Meu bom frei Genebro, não sei se é pecado, mas toda esta noite, em verdade vos confesso, me apeteceu comer um pedaço de carne, um pedaço de porco assado!... Mas será pecado? [p. 276].

O conto prossegue, expondo as façanhas de Frei Genebro, até ao momento da sua morte, em que um grande anjo tomou nos braços a alma de Genebro, levando-a para além das nuvens até ao julgamento final, em que surge uma balança para pesar as boas obras e as más acções: Oh! Contentamento e glória! Carregado com as suas Boas Obras, ele descia, calmo e majestoso, espargindo claridade. Tão pesado vinha que as suas cordas se retesavam, rangiam. [...] Subitamente, porém, no alto, o prato negro oscilou como a um peso inesperado que sobre ele caísse! E começou a descer, duro, temeroso, fazendo uma sombra dolente através da celestial claridade. [...] O que teria causado esse súbito desequilíbrio na balança? Justamente isto: descobriram, no fundo daquele prato, que inutilizava um Santo, um pobre porquinho com uma perna barbaramente cortada, arquejando, a morrer, numa poça de sangue... [...] Então o Anjo, baixando a face compadecida, alargou os braços e deixou cair, na escuridão do Purgatório, a alma de Frei Genebro [p. 281-282].

A revisão literária feita por Eça com o seu monóculo crítico, em Frei Genebro, da vida de Frei Junípero, reflectirá alguns anseios da Geração de 70, tendo em vista uma crítica à realidade social oitocentista, dirigida aos cristãos que não vivem segundo os verdadeiros ensinamentos de Jesus, mas de aparências e de práticas contraditórias e vazias de significado.

Padre Manuel Mendes