PÃO DE VIDA

Padre Américo e eu - Do diário íntimo de Pe. Francisco Antunes

O mês de Julho reveste-se de especial significado na vida do Venerável Padre Américo - Pai Américo - e da Obra da Rua, pois nesse tempo Américo Monteiro de Aguiar foi finalmente ordenado Presbítero, com 41 anos [Coimbra, 28-VII-1929], e acabou por partir para o Céu, com 68 anos [Porto, 16-VII-1956]. Daí que, em jeito de continuidade da importante rubrica Facetas de uma Vida, tem sentido arquivar um testemunho biográfico interessante de um sacerdote virtuoso que bem o conheceu, como seu aluno e amigo para sempre - o Padre Francisco Antunes, da Diocese de Coimbra. De notar que foi o autor da oração da pagela para pedir a beatificação de Padre Américo [versão inicial]. Antes disso, com base em dados recolhidos na Cúria diocesana de Coimbra, do seu testemunho pessoal no Processo do Servo de Deus Padre Américo, em Coimbra [em 5 de Maio de 1992] e a partir de uma nota biográfica, redigida pelo Padre Amílcar Pedro Aleixo [21-I-1931, Chã de Álvares - Góis; 15-III-2011 - Coimbra], em nome da Liga da Caridade Sacerdotal, de 13 de Maio de 2009, segue-se um breve retrato de uma alma sacerdotal que se encontrou com Padre Américo. O Padre Francisco da Fonseca Antunes nasceu a 29 de Setembro de 1918, em Pousos, Diocese de Leiria, filho de Manuel Antunes e Maria de Jesus Fonseca; e era irmão do Padre Adriano Antunes [8-V-1914; 23-XI-1983]. Foi ordenado Presbítero em 29 de Junho de 1941, por D. António Antunes, Bispo de Coimbra, seu tio [16-XI-1875; 20-VII-1948]. Das missões pastorais para que foi enviado, após a sua ordenação, indicam-se as seguintes: Prefeito e professor do Seminário da Imaculada Conceição da Figueira da Foz, capelão da Gala e Covas [Lavos], director espiritual do Seminário da Figueira da Foz, capelão do Asilo Costa Ramos e encarregado da freguesia de Brenha. Colaborou no jornal O Dever. Depois, foi director espiritual do Seminário Maior de Coimbra, trabalhou na pastoral dos ciganos, cuidou dade Álvares - Góis; 15-III-2011 animação espiritual do Clero de Coimbra e colaborou na Obra da Rua - do Padre Américo - Casa do Gaiato de Miranda do Corvo: os rapazes da rua gostavam dele, pois com ele passaram horas de formação humana, moral e espiritual. Ainda paroquiou em Friúmes, S. José de Lavegadas, S. Miguel de Poiares, Arganil e S. João do Campo. É autor do opúsculo Alavancas [Coimbra, 2006]. Viveu pobre (a sua carteira era a carteira dos pobres) e pobre morreu. Faleceu em 11 de Maio de 2009, na Casa do Clero, em Coimbra [em que o visitámos]. Foi a sepultar no cemitério da Conchada [Coimbra], depois de Missa de corpo presente, em 12 de Maio, na igreja de Nossa Senhora de Lurdes, em Coimbra, presidida por D. Albino Cleto, Bispo de Coimbra, e em que participaram familiares, muitos amigos e sacerdotes.

Para que não se percam na voragem do tempo, de publicação já indicada - Renovamini - Boletim quinzenal dos alunos dos Seminários da Diocese de Coimbra [ano XVI, n. 7, 1 Abril 1969, p. 5-6], transcrevemos estas páginas tão ousadas e sinceras, sem retalhar e com os olhos próprios desse tempo. Ora, eis:

1929. Outubro nos seus primeiros dias. Acabado de fazer 11 anos. Sou pessoa importante. Vou para Coimbra dos Doutores. Vou para Padre. Ao entrar os portões do Seminário, ali aos lagos, lusco-fusco, três Padres. Um deles P. Américo: - Quero ver se o tiro pela pinta.

Não sei se tirou.

1930. P. Américo, professor de português. Chamadas em grupos de quatro. S.ta Luzia para estimular. Diz lá senão digo eu. E quem dizia empunhava. Quem não dizia apanhava. Sol de pouca dura. Santa Luzia foi reprovada.

P. Américo, meu Prefeito na Casa Nova.

- Francisco, não durmas. O Senhor Francisco dorme no Terço. O Senhor Francisco dorme nas meditações.

Francisco lutava. Eram alfinetes. Eram frascos com água. Eram safanões dos colegas. E Francisco dormia.

- Sr. Francisco amanhã, ao almoço, sai do refeitório antes dos outros. Vai ao quarto pelo travesseiro grande e trepa para o tanque do recreio da Casa nova. Esteja lá quando passarmos. E fique todo o recreio.

Francisco, batina e murça e travesseiro debaixo do braço. Passa todo Seminário, saúda a estátua. «Ó Vila Real, ó Vila... meus olhos são duas fontes...». Pedagogia falha. Francisco, à noite, ao terço, dormia.

- Francisco, porque voltaste o espelho contra a parede?

- Por nada.

- Porque foi? Diz lá! - Insiste:

- Por nada.

- Oh kun... E sai com ar chateado. Amigos da humildade? Imitação do meu Prefeito? P. Américo reparava o cabelo e postava-se ao fundo do refeitório à cata dos nossos risos.

- P. Américo e D. António [Antunes] no meu quarto.

- O menino joga o pião no quarto em vez de estudar... 

O soalho estava todo picado. Das cardas das nossa botas. Se jogava... só em cima da cama.

- Dias depois um prefeito estranho:

- O menino não estuda. Passa o tempo a jogar o pião.

Sai-lhe das mangas Santa Luzia. Duas bolachas. Arregalo os olhos e ponho-me a estudar. P. Américo nunca pegava na palmatória. Mandava vir o «Boleiro». Pedagogia em ensaio.

1931. P. Américo deixou de ser Prefeito. Continuou pelo Seminário. Começa o seu roteiro de Pai dos Pobres. Cruzámos frequentemente.

Namora-me: Ai o txico rico, txico, txico, txico. Ai o txico rico, txico, txico, txico. Numa toada que descia de mi a fá e de ré a mi. Eu ria-me. Ele, uma carantonha. E a cada encontro a mesma cantilena, o mesmo riso e a mesma cara feia.

1929 a 1933. Passamos pelas ruas de Coimbra. De cem em cem metros: - Quá! Quá! Olh'os Padrecas. São os gaiatos da rua. Atiram-nos pedras.

1933... Passamos pelas ruas de Coimbra.

- Acolá vão os srs. Padres Américos.

Olhamos. São os gaiatos da rua. Agradecemos. P. Américo batia os becos miseráveis da cidade. 1936 ... Sou Teólogo. Férias grandes.

- Francisco preciso de ti para as Colónias de Férias dos garotos da rua. Vila Nova do Ceira. Dias altos. Sinto-me realizado. Catequese, récitas, passeios... P. Américo confia e sai a pedinchar. Regressa. Vamos esperá-lo. Canaviais a baixo. Camisas como bandeiras. As cantigas da Baixa. P. Américo em Domingo de Ramos. Caramba! Vale a pena ser padre.

1940. Vejo nascer a 1.ª Casa do Gaiato. Miranda do Corvo. Um, dois, três garotos. Depois, mais e mais e mais. P. Américo rumina. Não sabe para onde caminha. Vai ao seu Bispo: - Vá andando.

- E com este «vá andando», eu cá vou andando. Reza. Sofre. Que nada sobe sem sangue. Oiço ameaças: - Eu racho-lhe a cabeça com esta enxada. Padre Américo é um ladrão dos pobres.

A marca das obras de Deus: a incompreensão e a perseguição.

1941. Sou Padre. Minha mãe beija-me as mãos. Saio a dar a comungar a minha alegria. À Ladeira dos Lóios. Antigo, Lar do Ex-Pupilo.

- P. Américo, sou Padre.

P. Américo ajoelha. De joelhos beija-me as mãos. Não me escandalizo. Sou Padre.

Médico: - Vá a termas. E vou.

Monte-Real - Vidago - Luso. Levo na alma a alma do P. Américo. Aparece o 1.º vol. Do «Pão dos Pobres» e «Obra da Rua». Peço livros. Colo cartazes. Organizo sessões. Uma remessa e outra. Prego o P. Américo. Bispo de Vatarba [D. João da Silva Campos Neves] ouve. - O sr. não sabe que é proibido canonizar os homens em vida?

P. Américo vai a Monte Real, ao Luso, ao Bussaco, a Vidago. Abro-lhe palcos e igrejas.

- Francisco eu precisava de ti. Eu queria-te mesmo doente...

?. Casa do Castelo. Na Alta. Hoje demolida. P. Américo e meu irmão P. Adriano.

- Francisco, anda daí. Vamos ao Prelado.

- Não vou.

- Anda daí.

- Não.

P. Américo era um nome. P. Américo era tentação. Quem quisesse famas que o seguisse. P. Américo era um gigante. Tive medo. Pigmeu, não me sentia com pernas.

P. Américo insistiu com D. António. E ofereceu dinheiro. Não sei se 5, se 50 contos. In illo tempore, o escudo era moeda forte... D. António não fechou negócio.

1953. Paço de Sousa. Férias grandes.

- Francisco, vem fazer-me um retiro aos rapazes. Vou. Durante uma semana, de manhã e à noite, lanço a semente. O terreno está bravio. Risos, esgares, brincadeiras. A chuva vai caindo. O terreno vai cedendo. P. Américo assiste. Um comentário lacónico: - Tens um jeitico. Sábado. A messe está madura, vêm confessores. Lavagem geral. Última recomendação: - Escrevam os vossos propósitos e tragam amanhã para o altar.

Domingo. Aldeia gaiata lavada. Missa festiva. Ofertório solene. Seriedade. Consciência. Emoção. P. Américo assiste no canto direito sob o arco Cruzeiro. Ite missa est... Morde-me a tentação dum comentário.

- Ó ... ó... ó txico. Não queres saber. O que me havia de suceder. Tu sabes lá. Eu... o Padre Américo... o Senhor Director... o n.º 1 da Nação... Tu um cisco... Olha. Quando vi aquilo, volto-me para o Sacrário. O que me havia de sair: - Ó Senhor, eu sou um merdas! ... E... e... no plural... e no plural...

1956. Maio ou Junho. Inauguração de três Casas do Património [dos Pobres] na Gala. Um cheque em Paço de Sousa. Levanto no Porto. P. Ventura de Lavos, mestre de obras.

P. Américo vem. Ajoelham diante dele e beijam-lhe as mãos. Ralha.

- Ó Francisco, é assim que tu ensinas esta gente a cumprimentar-te?!...

Dá-me boleia para Coimbra. Deixa-me junto do Seminário. Abraça-me. Um abraço diferente de todos os outros. Era a despedida. A última recomendação:

- Nunca deixes de ir à Casa do Gaiato. Eu pedi ao Prelado. E dei algo à conta disso.

Julho. 16. Morre o P. Américo. Estou em Vidago. Alugo um táxi e desço o Marão alta madrugada. Celebro em Paço de Sousa pelo P. Américo. Mais uma hora de espera. Arrependo-me de não ter seguido ao Porto. O Porto e P. Américo a custo se deixam. - Ai Porto, Porto, quão tarde te conheci.

Alaga-se com gente a Aldeia do Gaiato de Paço de Sousa. Tudo em estado de choque. É preciso abrir o caixão de chumbo. Dou uma palavra aos gaiatos: - Tragam uma faca ou tesoura grande.

Aparece um arsenal de ferramenta. Corre nos jornais: Os gaiatos assaltaram o caixão e arrombaram-no para ver o seu Pai Américo.

Correm lágrimas. Não vejo ninguém enxuto.

Vale a pena ser Padre. Vale a pena ser Padre pobre e morrer ao serviço dos pobres.

1968. Vou à Casa do Gaiato. Vêem-me ao longe. Passam palavra.

- Olha o sr. P. Francisco. Lá vem o sr. P. Francisco. Traz a máquina. Dá cinema?

Traz «Os três porquitos»? Confessa? Fica cá muito tempo?

Nasce-me uma alma nova. É graça que não devia perder e perco. Vou rareando. 1969 ainda me não estreei.

Dou cinema. Falo. Confesso. Dou-lhes Pão.

- Já se vai embora. Quando é que volta?

Padre Manuel Mendes