PÃO DE VIDA

Da visita domiciliária - O valor da visita ao pobre

A palavra visita significa ver, pelo que visitar implica ver os outros, olhando-os nos seus olhos, cara-a-cara. Na tradição eclesial, em especial de matriz vicentina, as visitas domiciliárias aos necessitados e enfermos têm desempenhado sempre um papel chave no serviço aos pobres, em encontros pessoais, com fé em Jesus Cristo - que Se fez pobre, para nos enriquecer com a Sua pobreza [2 Cor 8, 9]. Para S. Vicente de Paulo, uma visita, feita com os olhos da fé, implica ver o rosto de Cristo na pessoa pobre. Com as visitas domiciliárias, pode-se discernir melhor a prioridade das necessidades e atender aos outros como irmãos.

As bênçãos das visitas são um tema recorrente e importante nas Escrituras, hebraicas e no Novo Testamento, desde a visita de Elias à viúva de Sarepta, passando pela visita da Virgem Maria à sua prima Isabel, até muitos encontros de Jesus, fazendo o bem aos Seus amigos, em quem centra o Seu olhar e liberta de vários males que os afligem. Como exemplo paradigmático, no juízo final, entre outras obras, as visitas aos enfermos e aos reclusos são actos louvados por Jesus em relação aos irmãos mais pequeninos. Também nos Actos dos Apóstolos e em S. Paulo acontecem encontros significativos.

Na História da Igreja, desde os primórdios, a Caridade cristã e a Justiça estão no miolo da acção eclesial, com muitos e variados exemplos de bem-aventurados, conhecidos e discretos, e de tantas realizações e Congregações que sempre estiveram e estão com os pobres, marginais e doentes. Em 1617, quando fundou as Confrarias da Caridade, Vicente de Paulo deu este mandato explícito: As senhoras da Companhia servirão os pobres enfermos cada uma o dia que lhes corresponda, indo sempre duas a duas. Em 1625, ao fundar a Congregação da Missão, escreveu: nunca saímos sem permissão e dois a dois, nas missões para visitar os lugares dos marginais. Em 1633, com Luisa de Marillac, fundaram as Filhas da Caridade, colocando grande ênfase nas visitas aos enfermos pobres.

Na igreja do Santuário Nacional de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, em Perryville - Missouri, nos Estados Unidos da América, centro da Associação da Medalha Milagrosa, entre as pinturas de santos da Família Vicentina, encontra-se um belíssimo quadro do Beato Antoine-Frédéric Ozanam, feito por Gary Shumer, artista americano, designado: A visita ao domicílio. Nesta pintura, encontra-se Frédéric Ozanam, revestido da toga de professor universitário, fazendo uma visita a um domicílio pobre no bairro Mouffetard, em Paris - França. Está acompanhado por dois estudantes - um tem uma lousa para instruir um menino e outro tem uma cesta de pão para essa família. Por detrás, vêem-se duas figuras relevantes na Família Vicentina: Emmanuel Bailly, com chapéu alto - 1.º presidente da Sociedade de S. Vicente de Paulo; e Soeur Rosalie Rendu [1786-1856] - Filha da Caridade e visitadora dos pobres.

Esta ligeira perspectiva, dessa interessante obra de arte, conduz-nos ao cerne do carisma vicentino, cujo significado caritativo se reveste de enorme transcendência cristã. Como verdadeira apóstola do bairro Mouffetard, Soeur Rosalie terá guiado o jovem Frédéric Ozanam e os seus companheiros até aos pobres dessa zona de miséria, com o modelo de visita domiciliária aos pobres. Esse grupo de sete jovens universitários, que fundaram a primeira Conferência de Caridade, em 23 de Abril de 1833, em Paris, era assim constituído: Antoine-Frédéric Ozanam [1813-1853]; Emmanuel Bailly [1794-1861], August Le Taillandier [1811-1886], François Lallier [1814-1886] Jules Devaux [1811-1880], Paul Lamache [1810-1892], Félix Clavé [1811-1853]. Neste âmbito, A.-F. Ozanam terá conhecido a obra Le Visiteur du pauvre [1820], de Joseph-Marie de Gerando, em que se lê: Se tivermos a valentia de visitar assiduamente o lar do pobre [...], teremos adquirido novas luzes, novas forças.

As Conferências de Caridade passaram a designar-se por Sociedade de S. Vicente de Paulo [SSVP], em Assembleia Geral de 8 de Dezembro de 1835. No seu Manual vem o seguinte: Nenhuma obra de caridade se há-de ver como estranha à Sociedade, embora esta tenha por finalidade mais específica a visita às famílias pobres. Frédéric Ozanam escreveu amiúde sobre as visitas domiciliárias, como afirmou em carta [de 9-II-1837] ao Conselho Geral, de Paris, sobre a expansão das Conferências vicentinas em Lyon: A visita aos pobres em domicílio tem sido sempre a nossa principal obra. Sobre a SSVP, Ozanam escreveu a F. Lallier: O objectivo da Sociedade é, sobretudo, caldear e estender entre a juventude o espírito do Catolicismo. Para tal fim, a assiduidade às reuniões, a união de intenções e de orações são indispensáveis. A visita aos pobres deve ser o meio e não o fim da Sociedade.

Segundo a actual Regra da Confederação Internacional da Sociedade de de S. Vicente de Paulo, aprovada em Assembleia Geral extraordinária, em Roma, em Outubro de 2003, a vocação vicentina dos membros da Sociedade, chamados vicentinos, é seguir Jesus Cristo servindo aqueles que precisam e, desta forma, dar testemunho do seu amor libertador, cheio de ternura e compaixão. Os confrades mostram a sua entrega mediante um encontro de pessoa a pessoa. O vicentino serve na esperança [art. 1.2]. Nos encontros com os pobres: Os vicentinos rogam ao Espírito Santo que os guie durante as visitas e que faça deles instrumentos de paz e da alegria de Cristo [art. 1.7]. E, ainda: Os vicentinos servem os pobres com alegria, escutando-os e prestando respeitosa atenção aos seus desejos, ajudando-os a tomar consciência da sua dignidade e recuperá-la, pois somos todos feitos à imagem de Deus. Eles visitam Cristo sofredor na pessoa pobre [art. 1.8].

Foi por este caminho cristão, de entrega radical ao próximo, que Padre Américo - samaritano de modo exemplar, e devoto de Francisco de Assis, Vicente de Paulo e Frédéric Ozanam - foi percorrendo desde a sua meninice e ao serviço dos pobres, na Igreja. Deixou belas páginas literárias, como este naco de prosa que dá um testemunho eloquente do seu modo de ver o visitador do pobre:

A missão de visitar o Pobre tem beleza; é filha de uma intuição artística, que apaixona e devora o visitador.

Quanto mais repelente for o estado e condição dos visitados, mais se enamora deles.

O artista verdadeiro é um crente; ele coloca na base de todas as suas criações, a Beleza Incriada de Deus, sem o que produzirá fantasia que deslumbra sim, mas não faz arte que comova.

O visitador do Pobre, que também é artista, tem necessariamente de ser um crente.

A sua linguagem há-de dizer que ele é da Galileia. A beleza da sua acção é polarizada no seio de Deus.

Ele chama a todos irmão, e porque são da sua carne, tem pena dos mais desamparados. Como a galinha faz aos milhafres, assim, ele dá sinal e quer defender os inocentes, debaixo das suas asas.

Faz arte que comove, e não obra que deslumbre, o visitador de Pobres [in Obra da Rua,1942, p. 39-40]

Padre Manuel Mendes