PÃO DE VIDA

Bernardo de Vasconcelos - De Marvão a Coimbra

Considerando a preocupante situação sanitária actual, devido ao covid-19, a serenata monumental coimbrã, à meia-noite, de 7 para 8 de Maio, este ano não foi na Sé Velha, mas no Paço das Escolas, da Via Latina, e não teve a presença significativa dos estudantes trajados de negro - com as capas ao luar, mas foi transmitida nas redes sociais e assistida largamente. Esta tradição académica, emblemática da Universidade de Coimbra, é muito marcante para os actuais e antigos estudantes da cidade do Mondego - a Colina Sagrada [Manuel Ribeiro, 1925], sendo Coimbra, Terra de encantos [Sérgio de Castro, 1925], pois: Portugal é todo lindo,/ E tem ao meio um brilhante,/ Que é Coimbra, reflectindo/ Na alma do estudante.

A propósito deste momento alto da tradição coimbrã, veio à nossa mente recordar uma figura eclesial inspiradora, que se encantou por Coimbra dos poetas: Bernardo de Vasconcelos, monge e poeta místico. Foi estudante em Coimbra e Deus chamou-o ao Ideal cristão pelo caminho do claustro beneditino. Desde já, diga-se que Padre Américo visitou Frei Bernardo da Anunciada em 1931, no seu leito de dor, no Porto. Assim, justificam-se umas sucintas notas biográficas sobre este monge, socorrendo-nos basicamente do seu Processo de Beatificação [no Arquivo do Mosteiro de Singeverga] e de escritos do saudoso amigo e sábio beneditino D. Gabriel de Sousa - uma testemunha qualificada, que o conheceu pessoalmente e foi Postulador da sua Causa de Beatificação, e de quem ouvimos falar da sua vida monástica. Neste âmbito, é de notar uma excelente Tese de mestrado em Teologia, de André Olim, sob o título: Frei Bernardo da Anunciada - O Martírio Místico: A experiência mística no caminho do martírio para Deus [UCP - Porto, 2014]:

Frei Bernardo da Anunciada ocupa também merecido destaque no flos sanctorum coimbrão, pois estas terras do Baixo Mondego, com seus choupais e olivedos, mosteiros e ermitérios, se afiguram fadadas para um como procurado 'meio divino' ou habitat da santidade. Pensamento que tanto poderá fundamentar-se com a lembrança de nomes antigos, como Santo António, S. Teotónio e Santa Isabel, como com a citação de vultos actuais, a culminar com a já popularmente aureolada figura dum Padre Américo.

Em breve apresentação, Bernardo Vaz Lobo Teixeira de Vasconcelos nasceu em 7 de Julho de 1902, em berço fidalgo: a casa de Marvão, solar antigo e ameiado na freguesia de S. Romão do Corgo, concelho de Celorico de Basto, na Arquidiocese de Braga. Foi o sétimo dos oito filhos de Filomena da Conceição Vaz Lobo [1867-1952] e Manuel Joaquim da Cunha Maia Teixeira de Vasconcelos [1870-1925], casados em 1888. Seu pai formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, foi juiz em Castro Daire e delegado da Procuradoria Régia em Cabeceiras de Basto. Foi baptizado em 5 de Agosto de 1902, na igreja paroquial do seu torrão natal, com o nome do Doutor Marial por excelência - Bernardo. Da sua família, escreveu com gratidão: Que graça é nascer no seio de uma família temente a Deus! E ter quem guie os nossos primeiros passos na direcção da Igreja da nossa terra natal; e ter quem nos ensine a dizer, antes de mais, o doce nome de Jesus! Ainda recordo aquela tenra idade em que (dizem-me os meus) eu gostava de fazer a Via-Sacra e beijar o chão do nosso oratório secular [carta de 6-VIII-1927]. Frequentou a instrução primária, com a ajuda da irmã Mariana; e era enfermiço e vivaço, pois, em 6 de Novembro de 1911, escreveu: Daqui em diante hei-de-me sempre portar bem. Sobre a sua infância, a sua irmã mais velha, Maria Bárbara, registou as suas lembranças [O Bernardo, 1938].

Aos 10 anos, em 15 de Outubro de 1912, seus pais decidiram matricular o Bernardo no Colégio de Lamego, dos beneditinos portugueses, então orientado pelo Padre Alfredo Pinto Teixeira. Ali fez Primeira Comunhão; e recebeu o sacramento do Crisma, por D. Francisco José de Brito, Bispo de Lamego. Em 1915, concluiu o 4.º ano, sendo bom aluno. Em Março de 1917, uma peritonite obrigou-o a interromper os estudos.

Depois de seu irmão Manuel Baltasar, em Outubro de 1918, Bernardo também foi para Coimbra, onde foi matriculado no 7.º ano de Ciências, no Colégio S. Pedro, como externo; porém, dessa altura da sua mocidade estudantil, confessou: Lançado aqui para o meio mau, nos primeiros anos de Coimbra, caí, sem ter quem me deitasse, carinhosa e severamente a um tempo, a mão amiga [...]. No Verão de 1919, passou férias na Quinta das Casas Novas [Godim, Régua], da irmã Maria Bárbara. Em Outubro de 1919, matriculou-se no 1.º ano de Ciências da Universidade de Coimbra, com a mira na Escola Naval, e viveu numa pensão na Conchada. Superada uma crise religiosa, na sua adolescência, escreveu à mãe: A ovelha tresmalhada voltou de novo ao rebanho [...] [carta de 6-XII-1919]. Nessas horas de graça, escreveu também à irmã Maria Bárbara: O meu fim principal foi comungar no dia 8, de Nossa Senhora da Conceição; e de facto, nesse dia, e no seminário, eu lá estava à Sagrada Mesa, recebendo o Pão dos Fortes [carta de 12-XII-1919]. A partir dessa altura, Bernardo nunca mais deixou de ser o peregrino do Ideal, uma alma ao encontro de Deus. Em 14 de Março de 1920, foi admitido no Centro Académico da Democracia Cristã [CADC, registo n. 398].

Devido à falta de rendimento escolar, por motivos de saúde, seu pai decidiu colocá-lo no Porto, em Outubro de 1920, para fazer o Curso Comercial; e, entretanto, praticou numa casa bancária. Na sua vida interior, foi ajudado pelo Padre José Lourenço, dominicano, colaborou [como Bernardo de Marvão] na revista Flores espirituais e escreveu assim: Amanhã vou entrar para os Filhos de Maria do Carmo. Tenho diante de mim a fita azul e a medalha que comprei agora mesmo. Que a Virgem me guie e me proteja [carta de 16-VI-1921]. Nas horas livres frequentou aulas de Estética e Belas Artes, do Prof. Aarão de Lacerda. Em Maio de 1922, encontrava-se outra vez em Lamego para fazer o 7.º ano de Letras no Liceu, com as lições do Padre Paulo Martins, estudando muito.

Com 20 anos, voltou para Coimbra [rua Larga, n. 14] e em 31 de Outubro de 1922 matriculou-se no 1.º ano da Faculdade de Direito. Sentiu afeição por uma rapariga a que chamou Luar... Esse amor animou-o, escrevendo: Sinto-me cada vez mais feliz, e praza a Deus que eu possa vir a ser digno de tanta felicidade [carta de Jan. 1923]. Afastou-se da estúrdia da vida académica; e, em 21 de Janeiro de 1923, Bernardo ficou membro da Conferência de S. Vicente de Paulo, de Direito, tendo-se empenhado em resolver para maior glória de Deus, na família que lhe destinaram para visitar, uma série de questões difíceis: um filho de 8 anos por baptizar, uma pequenita de 21 meses não registada, o marido batia na mulher, as rendas de casa por pagar. De 11 a 13 de Fevereiro de 1923, entre 21 rapazes do CADC, fez um retiro no Luso, dirigido pelos Padres Raúl Dias e Manuel Pacheco, jesuítas, no qual, depois de uma conferência sobre a Graça, o viram em lágrimas, diante do Sacrário da capela; e anotou no seu Diário Espiritual: Servir a Deus é o ideal mais alto, é o ideal único - é o Ideal. Religado ao CADC, chegou [em 3 de Maio de 1923] a secretário da redacção da revista Estudos e a Vice-Presidente da direcção [27 de Maio]; e participou em várias iniciativas, v.g.: em 8 de Junho 1923, realizou-se uma festa de beneficência no Teatro Avenida [enquanto, durante esse sarau, foi lançada uma bomba na sede do CADC...]. Em Julho de 1923, foi em tratamento para as Caldas de Vizela; e em Setembro de 1923, foi em peregrinação a Lourdes, com sua irmã Manuela, conforme manifestou a D. Sílvia Cardoso; e, como maqueiro [brancardier], assistiu à cura da Irmã Benigna, vítima de tuberculose. Regressado a Coimbra, com sentimentos monárquicos, fundou não uma república, mas o Estado livre do Rego d'Água [nessa Rua, no n. 3]; e, em Outubro de 1923, matriculou-se na Faculdade de Letras [como voluntário, nalgumas cadeiras].

Em Coimbra, Bernardo de Vasconcelos gostava de se recolher na Sé Velha e, sentindo dúvidas sobre a sua vocação, decidiu falar com o Padre Manuel Gonçalves Cerejeira, de cujo encontro escreveu: E assim ficou resolvido que eu encarasse de frente o sacerdócio como a minha vocação e que nas mãos de Deus entregasse o meu espírito e me abandonasse inteiramente. E, agora que já vão cinco semanas de convívio com Jesus-Hóstia, eu sinto o acerto da minha resolução; nunca mais tive dúvidas [carta de 20-XII-1923]. Entretanto, comunicou esta resolução ao Padre Dr. Luís Lopes de Melo, Prior da Sé Velha e assistente espiritual do CADC, mas dizendo: Penso que virei a dar um religioso... Sobre o lugar em que havia de realizar a sua vocação, Bernardo manifestou-se inclinado para a Ordem Beneditina, pelo que escreveu a D. António Coelho, seu pai espiritual, expondo-lhe o seu caso [carta de 23-XII-1923]. Em Janeiro de 1924, fez outro retiro espiritual, em Sequeiros [para Bernardo na área de Penafiel; de facto, em Lodares - Lousada], orientado pelos Padre Vaz e Sebastião Pinto, jesuítas. Na passagem de Mons. Pereira dos Reis por Coimbra, na Sé Velha, em 10 de Fevereiro de 1924, recebeu o Escapulário dos Oblatos Seculares da Ordem de S. Bento. Entretanto, ficou membro da Liga Eucarística dos Estudantes, sendo eleito Presidente, em 17 de Fevereiro de 1924. Na sequência da sua decisão vocacional, foi combinada a experiência de alguns dias no claustro; e Bernardo visitou o mosteiro de S. Julião de Samos, na Galiza No meio desse alvoroço vocacional, em 11 de Maio de 1924, no CADC, proferiu a bela conferência Do Ideal Cristão, que repetiu em Aveiro; e [refundida] apresentou-a, em 2 de Julho de 1924, no Congresso Eucarístico Nacional, em Braga, dizendo: Senti-a e vivi-a, longa e profundamente; meditei-a muito. Tem a bênção do Senhor! Tem um pouco do alvoroço santo do despertar risonho da minha vocação [carta de Set. 1924].

Padre Manuel Mendes