PÃO DE VIDA

Padre Horácio - De como conheceu Padre Américo

Cada tempo e lugar tem os seus sinais, mais ou menos fortes, de dores e de alegrias. Nesta época singular à escala global, uma reflexão crente poderá passar pela redescoberta da dependência do ser humano - fundamentalmente de Deus, na Criação e com os outros. Vivem-se momentos de confinamento e medo em muitos países, pois os números (as pessoas com nome e rosto!) de infectados e vítimas sobem diariamente, aumentando a ansiedade nas populações. Entre tantas informações, é de meditar neste testemunho de um médico italiano - Filippo Risaliti: Dei-me conta de que, na luta contra o coronovírus, o nosso esforço se centra demasiado em combater os males físicos dos pacientes. Depois do Bispo Giovanni Nerbini designar alguns médicos cristãos do hospital de Prato, na Toscana [Itália], para levar a comunhão aos doentes, no Domingo de Páscoa, não conseguiu conter a emoção, confessando: 'Chorei com os pacientes'... Na verdade, a saúde espiritual é muito importante na vida humana.

Todos os dias na Igreja e no mundo, a pessoa humana tem sede de felicidade e há-de procurar realizar a sua vocação, no seu percurso pessoal e contexto vital que vai encontrando. Na verdade, todo o ser humano tem nostalgia do Divino! Se for dando tudo, menos a vida, não dará nada... Com demasiada poluição sonora e sujeitos a múltiplas preocupações e distracções, nesta era digital, pode viver-se desatento ao essencial, pelo que há uma necessidade cada vez maior de momentos de silêncio, para ouvir os outros e a nossa consciência. O II Concílio do Vaticano consignou que a consciência é o núcleo mais secreto do homem, e o santuário onde ele está a sós com Deus, cuja voz ressoa no seu íntimo [Constituição Dogmática Gaudium et Spes, n. 16 - cf. Pio XII - AAS 44 (1952), 271]. No meio dos ruídos deste mundo, em que é frequente ver muita gente com auriculares nos ouvidos, será mais difícil escutar e reconhecer a voz do Bom Pastor? Na parábola do pastor, Jesus disse: Ele chama as suas ovelhas pelo seu nome e leva-as para fora. Depois de ter feito sair todas as que lhe pertencem, caminha à sua frente e as ovelhas seguem-no, porque conhecem a sua voz [Jo 10, 3-4]. A propósito, sublinhamos o significado de que os membros desta comunidade - casa-mãe da Obra da Rua - sintam o cheiro das ovelhas e olhem pelo seu rebanho, cuidando das suas necessidades e alegrando-se com a sua saúde.

Em 6 de Maio de 2020, transcorreu um vinténio do passamento de Padre Horácio, sacerdote da Diocese de Coimbra, que se apaixonou pela Obra da Rua, como realização de serviço aos pobres na Igreja. Por deferência de Padre André Freire, do seu processo [no Arquivo diocesano], registámos breves dados biográficos, a saber: De seu nome Horácio Francisco Azeiteiro, nasceu em 28 de Janeiro de 1924, na Lentisqueira, concelho de Mira, filho de Manuel Francisco Azeiteiro e de Maria de Miranda Morais. Foi aluno dos Seminários de Coimbra e ordenado Presbítero em 13 de Agosto de 1950, na Sé Nova, em Coimbra, por D. Ernesto Sena de Oliveira, Bispo de Coimbra [1949-1967]. Celebrou Missa Nova em 15 de Agosto, na Lentisqueira. Entretanto, foi responsável pela Casa do Gaiato de Miranda do Corvo - Coimbra, desde 29 de Setembro de 1950 [até 20 de Junho de 1992]. Faleceu em 6 de Maio de 2000, em Setúbal, e foi sepultado na sua terra natal.

A notícia da sua passagem deste mundo aconteceu cerca de dois meses antes da nossa ordenação presbiteral, encontrando-nos em Santo Tirso, com Padre Celestino, pelo que tivemos de passar alguns rios - do Ave ao Mondego - para participar nas suas exéquias. Depois de uma sentida Eucaristia, fixámos ainda vivamente os momentos da descida do seu féretro simples à terra, na Lentisqueira, debaixo de chuva intensa, rodeado por familiares, membros da Obra, conterrâneos e outros amigos, em lágrimas. Da sua última vontade, na sua campa rasa, quis apenas os dizeres: Paz e Bem. Na verdade, foi o lema [franciscano] da sua vida de serviço aos pobres, que serviu até ao limite das suas forças, como pai de família de rapazes da rua, na sua Diocese, e em visitas domiciliárias a pobres, ajudando-os nos seus rudes abrigos, em diversas zonas de Portugal.

Sobre o seu itinerário biográfico - de padre simples, arreigado à terra e amigo dos pobres - com sentido vocacional, notámos a pertinência de recolher o seu testemunho de vida - de como foi chamado e enviado a servir a Igreja, na Obra da Rua. Os seus escritos falam claramente das suas lutas pelo sustento das bocas a si confiadas e pelo bem de outros mais frágeis. Com caligrafia muito legível, redigiu regularmente a sua Tribuna de Coimbra para as páginas d'O Gaiato, em crónicas terra-à-terra do viver dos seus filhos e pobres, seguindo o mandato de Jesus sobre o juízo final: Tive fome, não tinha abrigo...

Ao acompanharmos o processo de glorificação canónica de Padre Américo, Padre Carlos deixou-nos um dia consultar certo documento dactilografado com testemunhos significativos, como o de Padre Horácio, em 3 de Julho de 1992 [p. 85-100], recolhido na Casa Episcopal de Coimbra, perante o Cónego Manuel Leal Pedrosa [Promotor de Justiça], Padre José Varanda [Notário] e Padre Alfredo Ferreira Dionísio]. Trata-se de Cópia do processo rogatório da Postulação da Causa de Canonização do Servo de Deus Américo Monteiro de Aguiar, sacerdote, sobre a sua vida e fama de santidade, realizado no Tribunal Eclesiástico de Coimbra, nos anos de 1992 e 1993. Assim, sobre as primícias da paixão de Padre Horácio pelos pobres, é de transcrever o seguinte: Conheci o Servo de Deus [Padre Américo] muito antes de colaborar directamente com ele, por meio dos seus artigos no 'Correio de Coimbra'. Conheci-o depois, em 1941, em visita ao Seminário da Figueira da Foz e à Casa do Gaiato de Miranda do Corvo. Comecei a trabalhar com o Servo de Deus, desde 1950 a 1956, já a trabalhar em Miranda [do Corvo] e Lar de Coimbra, colaborando com ele, como Padre da Rua.

Estava dado o mote para encontrar mais elementos sobre alguns dos seus primeiros passos, menos conhecidos, de como foi entrando na Obra da Rua. Todavia, com as contingências actuais, não se tem logo acesso a certos fundos de bibliotecas e arquivos. Numa teimosia bibliográfica e documental [que Deus nos perdoe, mas recomendada pelo saudoso sábio beneditino D. Gabriel de Sousa, primo de Padre Américo], foi possível localizar [por cortesia de Natércia Coimbra, num Arquivo da Universidade de Coimbra, do espólio de J. P. Baptista Dias] alguns números de Renovamini - Boletim quinzenal dos alunos dos Seminários da Diocese de Coimbra, em especial um exemplar dedicado ao Padre Américo [n. 7, 1969, 6 p.], no qual se encontra um interessante artigo autobiográfico, sob o título: Um testemunho de P.e Horácio - Como conheci Pai Américo e como me apaixonei pela sua Obra [p. 4 e 6]. Assim, como memória grata, ficam registadas as suas próprias palavras sobre o desígnio vocacional a que foi sendo chamado. Ora, eis:

Comecei a conhecer Pai Américo pelo Pão dos Pobres no Correio de Coimbra, talvez por 1939. Em Maio de 1941, no meu 3.º ano do Seminário da Figueira [da Foz], foi o nosso passeio anual até Miranda do Corvo, onde almoçámos na Casa do Gaiato que tinha um ano e uma meia dúzia de pequenitos, entre os quais o Avelino, que é hoje chefe da expedição de O Gaiato, em Paço de Sousa, e o Manel Côco, actualmente ao serviço do escritório na Casa do Gaiato de Lisboa. O nosso almoço, servido num barracão, onde agora são os dormitórios, foi de sopa e arroz com galinha e alface. Eu era dos mais velhos e gostava de dar os 'Vivas'. Nunca mais esqueci esta visita e os mimos que fizemos aos gaiatos.

Neste mesmo ano, no fim dos exames, Pai Américo foi pregar um Retiro aberto. Todos gostámos muito.

No Seminário de Coimbra vi muitas vezes Pai Américo e ouvi-o algumas vezes. Ficava sempre muito impressionado com os casos que ele contava.

Recorda-me quando apareceu o jornal O Gaiato. Dois gaiatos começaram a vendê-lo no Seminário. Comprei-o sempre e nunca deixei de o ler; em teologia comecei a assiná-lo. O Gaiato teve muita influência na minha vida. Nos últimos anos de Seminário alguns companheiros chamavam-me gaiato.

Três dias antes da Ordenação Sacerdotal soube que Pai Américo me tinha pedido ao Sr. Arcebispo [Bispo de Coimbra, D. Ernesto Sena de Oliveira]. Dez dias depois recebi a carta que segue e que guardo carinhosamente - «24-8-50/ Dia de S. Bartolomeu,/ Apóstolo. Padre Horácio:/ Podes ser um membro activo desta Obra Social e experimentar nela a tua generosidade, como o Mestre quer e espera de nós. O teu Prelado não impede. /Diz algo neste sentido ao teu amigo in C. J. P. Américo!».

Disse-lhe que sim e no fim de Setembro entrei na Obra e Pai Américo confiou-me a Casa de Miranda do Corvo e o Lar de Coimbra. Recorda-me o dia em que me confiou esta missão, quando nos sentámos à mesa para almoçar, levantou a batina e me mostrou as calças rotas no joelho - «olha a nossa riqueza».

Nos seis anos seguintes em que foi vivo Pai Américo cada vez me impressionou mais pela sua vida de homem todo de Deus e todo ao serviço dos homens. Para ele não havia barreiras no amor: nem dinheiro, nem fama, nem importância, nem categorias sociais; nada.

Pai Américo foi o Homem - Sacerdote que mais me marcou; e a sua Obra tem sido o quinhão que Deus me deu e que gostosamente tenho procurado saborear.

Mostrando-se sempre muito empenhado no sustento da sua comunidade e confiante na promessa de Jesus, num cantinho do Boletim supracitado deixou um pequenino pensamento, bem elucidativo do seu modo simples e apaixonado de ser padre com os pobres. Eis, então, este seu:

Testemunho

É meia-noite. Vou passar os olhos pelas notícias dos últimos 3 dias, para não andar fora do mundo.

Amanhã irei à feira de Cantanhede comprar batatas para semear. Depois toca a semear. Olha a vida deste pobre enrascado que tem de se desenrascar.

A vida é sempre bela para quem a encara com olhos de servir o Senhor - Patrão que paga 100 % e a Vida Eterna.

Vale a pena servi-l'O bem.

Abraço toda a grande família do «Renovamini».

P. Horácio

Padre Manuel Mendes