PÃO DE VIDA
Do perfume pascal
Por estes dias primaveris, tem havido um misto de chuva forte, morrinha e raios tremidos de sol, entre nuvens sombrias, que vão conseguindo iluminar este vale Dueça. Há pétalas de fruteiras e arbustos que não resistem à intempérie, caindo no chão, resistindo nas flores das ervas daninhas que enfeitam os pomares. Os citrinos, nos socalcos a poente, deram frutos abundantes, na mira continuada de alguns rapazes atrevidos que não deixaram tais sobremesas por mãos alheias. Neste sítio altaneiro, com a serra da Lousã no horizonte, vai-se sentindo a intensidade do perfume de uma laranjeira, junto à casa-mãe e a uma fonte corredia, que não deixa ninguém à sede. Na oitava e tempo pascal, continuam pelo mundo os sinais de sentido quaresmal e paixão, pela páscoa diária de muitas vítimas do Covid-19 e outras enfermidades, pelas dificuldades dos mais frágeis, insistindo-se nos apelos aos cuidados sanitários e de isolamento, também entre nós. É um tempo inesperado de redescobrir mais o sentido da família e a interioridade pessoal. Em Portugal, por tradição arreigada, seria também tempo de compassos pelas aldeias e urbes, mas neste ano as vias dolorosas são prioritariamente os que padecem de solidão e baixaram aos hospitais e outros lugares para cuidados especiais de saúde. Parecem sinais de aproximação aos tempos da Igreja primitiva, em que a Ceia do Senhor nas mesas das famílias cristãs e os cuidados dos pobres e enfermos substituíram os templos e sacrifícios antigos.
Na unção de Betânia, seis dias antes da Páscoa judaica, ofereceram a Jesus uma ceia, na qual há um gesto de serviço humilde: Marta servia e Lázaro era um dos que estavam à mesa com Ele. Então, Maria ungiu os pés de Jesus com uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço e enxugou-lhos com os seus cabelos. A casa encheu-se com a fragância do perfume [Jo12, 2-3]. Sucedeu que Jesus vinha da Galileia para Jerusalém e estava cansado e com os pés doridos, aproximando-Se da sua paixão. À crítica de Judas, Jesus pré-anuncia o desfecho da sua vida - a morte; pois, na unção post mortem, os defuntos eram ungidos antes de serem sepultados: Deixa que ela o tenha guardado para o dia da minha sepultura! De facto, sempre tereis pobres convosco, mas a Mim nem sempre tereis [Jo12,7-8]. Jesus é o Pobre dos pobres! Esta unção é também anúncio da ressurreição de Jesus, com a presença de Lázaro, redivivo, que testemunha o poder de Jesus sobre a morte, e o perfume antecipou a fragância da manhã de Páscoa. Comentando este trecho do Evangelho, Santo Agostinho escreveu: A casa encheu-se de perfume, isto é, o mundo encheu-se de boa fama. O perfume agradável é a boa fama [...]. O nome do Senhor é louvado por merecimento dos bons cristãos. Na Igreja, os cristãos também são ungidos no seu Baptismo, que incorpora na morte e ressurreição de Jesus, são mergulhados na pia baptismal, morrendo para o pecado e nascendo para uma vida nova em Cristo. Perfumar os pés de Jesus, também neste tempo, significa socorrer os enfermos, os que vivem na solidão, os últimos e quem vê partir os que ama... Nós O reconheceremos pelas suas feridas, pela sua voz quando nos fala intimamente, pelo Espírito que traz paz e afasta o medo [Tomás Halîk].
Com tantos sofrimentos e medos acentuados, veio à nossa mente um exemplo eclesial de resiliência, que nos foi dado conhecer no locutório do Carmelo de Coimbra. Passaram três anos da sua partida, configurada com Cristo: Madre Maria Celina de Jesus Crucificado. Assim, é-nos grato lembrar de relance, a propósito deste contexto actual, o perfume que deixou na Igreja, com uma vida terrena de cerca de 60 anos. De seu nome Maria Venceslina, nasceu em 13 de Abril de 1957, em S. Cristóvão de Nogueira (concelho de Cinfães, diocese de Lamego), foi a última de dez filhos, de Joaquim Cardoso Carvalho e Conceição Correia de Lemos, e baptizada em 11 de Maio. Seu pai sofreu um acidente que o obrigou a amputar a perna esquerda, sendo diabético. Viveu a sua infância num ambiente campestre e pastoreou um rebanho. Fez a Primeira Comunhão e recebeu o Crisma, em 30 de Março de 1965, das mãos de D. João da Silva Campos Neves, Bispo de Lamego. Frequentou a escola primária e ajudava nas vindimas. Era assídua nos sacramentos, dava catequese, foi auxiliar das Missões e membro da Juventude Agrária Católica. Na sua adolescência, confidenciou a sua simpatia pelo Carmelo ao seu Pároco, Padre Manuel António Pinto Afonso, que a recomendou para Coimbra [carta de 20-VI-1975]. Em 1 de Julho desse ano, escreveu assim: Jesus chamou-me há tanto tempo! Quando será que eu poderei dizer como Ele do alto da Cruz: 'Está tudo consumado'? Espero ansiosamente o dia em que eu me possa desprender para sempre do mundo, para viver somente para Jesus. Sei que a vida do Carmelo é de muita austeridade, mas como 'sofrer por amor não custa', nada temo, porque eu vou seguir Aquele que nunca conheceu derrotas, portanto com Ele hei-de sair vitoriosa. No sentido da sua vocação, abordou a sua mãe, mas não consentiu, pois era a mais nova e seu pai tinha partido, pelo que confidenciou: Eu ia deixar a minha mãe só!
Contudo, saiu de casa em segredo e arriscou as viagens de Cinfães para o Porto e para Coimbra, sem dinheiro suficiente. Finalmente, entrou no Carmelo de Santa Teresa e foi admitida ao Postulantado, com 21 anos, em 23 de Julho de 1978. Na sua caminhada, recebeu o hábito da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, em 3 de Maio de 1979; e fez a Profissão solene, em 16 de Julho de 1987. No início de 2000, foi diagnosticado um nódulo enquistado na base do pulmão direito. A partir desse ano, exerceu o cargo de Madre Prioresa por 13 anos não consecutivos, com total fidelidade e dedicação incondicional, seguindo o conselho de Santa Teresa de Jesus: Procurem ser amadas para serem obedecidas. Em Maio de 2005, foi revelado um carcinoma no peito, continuando a subida do seu calvário que foi durando 12 anos, mas conseguiu aceitar a sua cruz com paciência. Transcorridos oito anos, em Abril de 2013, foi descoberto um nódulo ao fundo do pescoço. Em Fevereiro de 2014, foi detectada metastização óssea a nível vertebral; em Janeiro de 2015, a sua mão esquerda ficou inchada, pois alastrava um linfedema significativo; e, em Abril de 2016, foi encontrado um nódulo no fígado. Neste seu sofrimento, dizia: Há pessoas que levam dois pesos: a doença e o não aceitarem a doença. Eu aceito e só levo um, a doença. Em Fevereiro de 2017, o cancro atingiu a zona cerebral. Aproximando-se da sua partida, recebeu emocionada o sacramento da Reconciliação, em 23 de Março; e, a uma Irmã que passou pela sua cela, disse: Vá dormir descansada que, se Nosso Senhor me vier buscar esta noite, eu estou preparada! Por esses dias, foi-se configurando mais com Cristo Crucificado, dizendo: agora já não levo a cruz, já estou nela. Quando, nas suas últimas horas, lhe perguntaram se queria mais água, respondeu: Quero Água Viva! No dia 31 de Março de 2017, pelas três horas da tarde, adormeceu nos braços do Pai celeste. Num testemunho sobre a sua vocação, afirmou: Sinto na minha vida a certeza de que, quando dizemos sim a Deus, Deus não nos abandona! E havia uma expressão que usava, para se fazer tudo por amor: pôr perfume em tudo.
Que o seu testemunho de fé em Cristo Crucificado e Vivo, da carmelita Madre Maria Celina de Jesus Crucificado [1957-2017], revigore a nossa esperança. Gratos por algum tempo e sorriso que nos deu, mesmo na sua cruz, perguntando pelo seu braço dorido. Eis este seu último e belíssimo poema, como sinal cristão da sua presença viva: JESUS,
Concede-me passar como uma sombra passa,/ Vestida de silêncio, sem nada dar por mim./ Inteiramente tua, ao Teu querer um Sim./ Concede-me passar deixando a Tua Graça.
Concede-me passar como uma nuvem passa,/ À terra prodigando a chuva benfazeja./ De mim faz uma bênção, um dom à Tua Igreja./Concede-me passar deixando a Tua Graça.
Concede-me passar como o orvalho passa,/ Humilde e pequenina 'spelhando a Tua luz,/ Que quem cruzar comigo só veja a Ti, Jesus./ Concede-me passar deixando a Tua Graça.
Concede-me passar como o perfume passa,/ A vida oferecida em dom total de amor./ Consuma-se o meu nada ficando o Teu odor./ Concede-me passar deixando a tua Graça.
Concede-me passar como uma brisa passa,/ Depondo um beijo Teu na dor de cada irmão./ Assume-me, Senhor, e faz-me redenção.
Concede-me passar como uma rosa passa,/ deixando perfumada a mão que a desfolhou./ Por toda a humanidade assim a Ti me dou./ Concede-me passar deixando a Tua Graça.
Concede-me passar como uma noite passa,/ Ficando em seu lugar um radioso dia./ Recebe a minha vida entregue por Maria./ Concede-me passar deixando a Tua Graça.
Padre Manuel Mendes