PÃO DE VIDA
Preces ao Senhor da Vida
e de outros males deste tempo.
Com a pandemia da doença Covid-19, causada por um terrível vírus microscópico, em que o medo (real) se vai apoderando de muitas pessoas em todo o mundo e tem provocado milhares de vítimas, principalmente em Itália, esta situação sanitária e social preocupante vem demonstrar claramente, mais uma vez e de forma global, a fragilidade humana e a condição mortal do ser humano, em especial no primeiro mundo, no século XXI. Desde a fome de Pão Eucarístico aos funerais tristíssimos, com as igrejas sem fiéis, às escolas e outros serviços e empresas que têm fechado e se vulnerabilizam, têm-se alterado (temporariamente?) alguns hábitos da maioria das populações, que recorrem cada vez mais às novas tecnologias para orientar o seu quotidiano de subsistência e ocupação. Os esforços maiores vão-se concentrando nos sectores da saúde, alimentares e de segurança, cujos dedicados profissionais e voluntários procuram dar o seu melhor, com riscos evidentes. Foram dadas recomendações de isolamento e higiene, com clareza, mas faltam materiais necessários para a protecção individual e mais acções concertadas em termos internacionais.
Por estes dias, em que os céus vão derramando o seu orvalho, os nossos olhos voltaram a fixar-se nestas palavras do Evangelho de Lázaro: E Jesus chorou [Jo 11, 35]. Na verdade têm sido grandes as dores deste tempo de pandemia, em vários países do mundo. Confiamos que Jesus vai na barca?! Porém, dorme ou dói-Lhe muito a situação do seu povo, em lágrimas?...
O dia 27 de Março, sexta-feira, ficou na memória de quem viu o Papa Francisco caminhar e presidir no adro da Basílica de S. Pedro, no Vaticano, a uma celebração extraordinária de oração, com lágrimas também do céu. Percorreu, sozinho (mas com a Igreja universal), a Praça de S. Pedro, em que se escutavam os sinos do Vaticano e as ambulâncias de Roma, para dar a bênção urbi et orbi, com a custódia Eucarística nas mãos, diante de um Crucifixo (venerado na igreja de S. Marcelo al Corso, pela peste de 1522) e de um ícone de Maria Salus populi Romani (venerado na Basílica de Santa Maria Maior). Desses momentos marcantes, citamos este inciso: Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos, todos. Ainda registamos esta oração: Queridos irmãos e irmãs, deste lugar que atesta a fé rochosa de Pedro, gostaria nesta tarde de vos confiar a todos ao Senhor, pela intercessão de Nossa Senhora, saúde do seu povo, estrela-do-mar em tempestade. Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus. Senhor, abençoa o mundo, dá saúde aos corpos e conforto aos corações!
Temerosos pela situação entre nós, estendemos ainda o nosso olhar e o nosso coração nomeadamente aos nossos vizinhos e até Itália e mais além, considerando que o Hospital de Milão é um centro nuclear de emergência, no combate ao covid-19, segundo o Capelão, P. Giovanni. Lembramos, nesta preocupação, um bem-aventurado, enfermo, da nossa devoção, no século XIX - Antoine-Frédéric Ozanam, com predilecção por essas terras, onde veio à luz. Nestas horas e dias incertos, pedimos também a sua forte intercessão, pois sentiu na sua carne e transmitiu com sabedoria as questões cruciais da vida humana: a doença e a morte. Foi cristão polifacetado: um grande intelectual católico, figura de proa do catolicismo social, profeta da misericórdia, muito dedicado aos pobres e modelo de leigo também para o nosso tempo. Nasceu em 23 de Abril de 1813, em Milão, e faleceu em 8 de Setembro de 1853, em Marselha, com 40 anos. Foi um dos sete fundadores da Sociedade de S. Vicente de Paulo, em Paris, em 23 de Abril de 1833, com 20 anos, cuja rede de Caridade se estendeu ao mundo inteiro. A condição de doente, de Frédéric Ozanam, é uma faceta menos conhecida. Contudo, os seus sofrimentos e angústias, pela precária saúde, afirmaram neste cristão exemplar um maior ardor pelo trabalho e a convicção do seu dever a cumprir pelo bem comum.
Neste sentido, eis então breves notas biográficas relativas às suas enfermidades. Foi um rapaz franzino e ficou doente com tifo, em 1820, conforme escreveu: Com sete anos, contraí uma grave doença. Todos julgaram reconhecer que só por milagre me salvei. Não que me faltassem cuidados. Os meus bons pais não deixaram a cabeceira da minha cama durante quinze dias e quinze noites. O seu pai, Jean-Antoine, foi um médico infatigável e compassivo, como se verificou nos motins dos operários da seda (em 1831) e numa epidemia de cólera (em 1832), em Paris, que terá causado cerca de 22 mil mortos, o que impressionou vivamente. Na vida familiar, F. Ozanam e a sua dedicada esposa, Amélie Soulacroix (com quem contraiu matrimónio em 23 de Junho de 1841), sofreram muito a perda de dois filhos (em 1842 e 1843). Mesmo com saúde frágil, doutorou-se em Direito (1836) e em Letras (1839), e teve múltiplas actividades: aulas, visitas aos pobres, artigos de jornal e livros. Desde 1846, o seu estado de saúde foi piorando e agravou-se, pois sofria de febres e hemorragias da vesícula, o que o obrigou a deixar (temporariamente) as aulas na Sorbonne. Uma nefrite, que o tinha atacado, voltou a manifestar-se em 1849 e aumentaram os seus sofrimentos. Em Abril de 1852, sofreu de uma pleurisia, agravada por uma febre maligna. A interdição de trabalhar foi-lhe penosa, como escreveu, em 19 de Outubro desse ano: O pior é a inacção a que sou obrigado a viver. No seu último calvário, que durou 14 meses, com a esposa ao seu lado e a Bíblia na mão, foi-se abandonado ao amor e à misericórdia de Deus. No Inverno de 1852-1853, passou longas horas relendo inteiramente a Sagrada Escritura - que tinha lido durante toda a sua vida - e anotou muitas referências bíblicas para meditação e consolo dos que sofrem, depois recolhidas numa obra preciosa - Le Livre des Malades [1913, reeditada em 2006], que deveria ser traduzida para a língua portuguesa. Em 10 de Janeiro de 1853, chegou a Pisa, com a esposa Amélie e a filha Marie [n. 24-VI-1845], mas a sua saúde não melhorou, pois tinha albuminúria. Em 23 de Abril desse ano, escreveu o seu maravilhoso adeus à vida terrena - como último acto de fé, esperança e caridade - abrindo-se à luz da eternidade, na oração de Pisa, da qual transcrevemos o seguinte:
É o começo do cântico de Ezequias: não sei se Deus permitirá que eu chegue ao fim. Sei que completo hoje o meu quadragésimo aniversário, mais do que metade do caminho da vida. Sei que tenho uma mulher jovem e bem-amada, uma filha encantadora, excelentes irmãos, uma segunda mãe, muitos amigos, uma carreira honrosa, trabalhos levados precisamente a ponto de poderem servir de fundamento a um trabalho há muito sonhado. No entanto, fui atacado por uma doença grave, obstinada e tanto mais perigosa que provavelmente esconde um esgotamento completo.
É necessário pois deixar todos estes bens, que Vós, meu Deus, me haveis dado? Não querereis Senhor contentar-vos com uma parte do meu sacrifício? Qual é a que necessito de Vos sacrificar de entre as minhas afeições desordenadas? Não aceitareis melhor o sacrifício do meu amor-próprio literário, das minhas ambições académicas, dos meus projectos mesmo de estudos, onde se misturavam, talvez, mais o orgulho do que o zelo pela verdade? Se eu vendesse metade dos meus livros para dar o preço aos pobres e, limitando-me a cumprir os deveres do meu estado, consagrasse o resto da minha vida a visitar os indigentes, a instruir os aprendizes e os soldados, Senhor, ficaríeis satisfeito, e deixar-me-ias a doçura de envelhecer junto de minha mulher e completar a educação de minha filha? Talvez, meu Deus, não o quereis mais? Não aceitais estas oferendas interessantes; Vós recusais os meus holocaustos e os meus sacrifícios. É a mim que quereis. Está escrito no princípio do livro que devo fazer a Vossa vontade e eu disse: Aqui estou Senhor. Aqui estou Senhor. Aqui estou se me chamares e não tenho o direito de lastimar-me! Deste-me quarenta anos de vida [...]. Se passo perante Vós os meus anos com amargura é por causa dos pecados que me mancham. Mas quando considero as graças com que os enriqueceste, eu passo-os perante Vós, Senhor, com reconhecimento. Quando Vós me prendeis numa cama para o resto dos meus dias não basta o agradecer-vos os dias que já vivi. Ah! Se estas páginas são as últimas que escrevo, que elas sejam um hino à Vossa bondade!
Em finais de Agosto de 1853, a sua saúde piorou. Foi acompanhado por uma procissão de amigos, desde vicentinos a camponeses; e, depois, subiu a bordo do navio a vapor Industrie, no porto de Livorno. Chegou ao porto de Marselha em 2 de Setembro desse ano e desembarcou em estado crítico. Ficou na Rue Mazade, n. 9, de onde não mais se levantou... Percebendo que estaria próxima a sua morte, diante do Crucifixo (que esteve sempre na sua mesa de trabalho), dirigiu esta humilde e admirável prece de resignação: Senhor, eu quero o que Vós quereis, quero como Vós o quereis, quero quando Vós o quereis, quero porque Vós o quereis. O seu dies natalis foi na festa da Natividade da Virgem Maria e as suas últimas palavras: Mon Dieu, mon Dieu. Ayez pitié de moi! [Meu Deus, meu Deus, tende piedade de mim!]. Com serenidade cristã, S. Vicente de Paulo [1581-1660], da sua especial devoção, tinha afirmado sobre a hora do passamento: os que amam os pobres durante a sua vida, não terão medo da morte. Em 22 de Agosto de 1997, na Catedral de Notre Dame, em Paris, durante uma Celebração Eucarística, na XII Jornada Mundial da Juventude, Antoine-Frédéric Ozanam foi beatificado pelo Papa João Paulo II, ao ser reconhecido um milagre obtido a favor de uma criança brasileira - Fernando Ottoni (em 2 de Fevereiro de 1926).
Neste tempo de pandemia, indiferença religiosa e desrespeito pela dignidade humana, diante de Deus - em silêncio, nos rostos das vítimas - fica ainda esta intenção de Ozanam: Devemos deixar agir a Providência, mas temos de lhe dar uma mãozinha. São todas aquelas pessoas que oram, olham e cuidam do seu próximo, como Jesus. Que nesta Páscoa, de igrejas vazias - mas com o Santíssimo Sacramento! - não seja esquecido o único Senhor, que venceu a morte e o pecado, na Cruz. E está Vivo para sempre, também naquelas pessoas que sofrem a sua paixão dolorosa. Porque buscais o Vivente entre os mortos? [Lc 24, 5].
Padre Manuel Mendes