PÃO DE VIDA

Por esse mundo fora

O tempo da Quaresma é propício para preparar a celebração do grande Mistério pascal de Jesus Cristo - paixão, morte e ressurreição de Jesus, que é o fundamento da conversão humana e cristã. Na sua Mensagem para 2020, o Papa Francisco sublinha que a Páscoa de Jesus não é um acontecimento do passado: pela força do Espírito Santo é sempre actual e permite-nos contemplar e tocar com fé a carne de Cristo em tantas pessoas que sofrem. Na urgência da conversão, é importante a experiência da misericórdia de Deus, que só é possível face a face com o Senhor crucificado e ressuscitado, 'que me amou e a Si mesmo se entregou por mim' [Gl 2, 20]. Neste diálogo de amigo a Amigo, não é como o diálogo atribuído aos habitantes de Atenas, que 'não passavam o tempo noutra coisa senão a dizer ou a escutar as últimas novidades' [Act 17, 21]. Este tipo de tagarelice, ditado por uma curiosidade vazia e superficial, caracteriza a mundanidade de todos os tempos e, hoje em dia, pode insinuar-se também num uso pervertido dos meios de comunicação.

No feliz 76.º aniversário deste humilde quinzenário, com uma riquíssima história, ao serviço dos pobres, na Igreja, no seu uso devido e cuja sementeira só Deus sabe, é salutar relembrar a sintonia do seu fundador com o centro da vida do cristão, sentindo compaixão pelas chagas de Cristo crucificado, conforme pregou em Fátima, em 13 de Maio de 1952: E assim como S. Paulo no seu tempo dizia a quem o escutava que não sabia dizer mais nada, nem sentir mais nada, nem viver mais nada senão somente Cristo, assim eu também hoje pela missão que Deus me confiou entre os mortais, eu digo que não sei viver mais nada, não sei sentir mais nada, nem falar de mais coisa nenhuma senão do Pobre e este crucificado. [...] Vamos curar as feridas dos Pobres e assim damos testemunho de Cristo.

Na verdade, o Padre Américo exerceu o seu ministério presbiteral alicerçado na sua fé em Cristo crucificado e vivo, que é activa no amor. Depois da sua ordenação (28-VII-1929), em carta para o seu amigo Simão Correia Neves, de 11 de Agosto, manifestou a sua grande alegria pela graça do sacramento da Ordem: é do Evangelho que tiro a minha vida, os meus pensamentos, as minhas obras. A minha alegria é tanta que os meus Superiores pedem-me para nunca sair do Seminário, que não faça nada, que não diga nada, que só comunique esta minha alegria, misteriosa, real, comunicativa. De facto, nesse ano pastoral, foi nomeado Prefeito e Professor de Português dos preparatórios, no Seminário de Coimbra.

Nessa época, a nível mundial e também na sociedade portuguesa, padecia-se muito com as consequências da desastrosa I Guerra Mundial, agravadas por uma profunda crise económica, provocada pelo colapso [crack] da bolsa de valores de Nova Iorque, que conduziu à grande depressão e desemprego de 1929-30. Os regimes totalitários, em expansão desde 1917, na Rússia, desafiavam seriamente a Igreja e o mundo. Neste contexto sócio-económico, de miséria social, na maior parte da população, com extremas carências nas necessidades básicas, o Padre Américo foi-se sentindo profundamente interpelado para acudir aos seus irmãos mais sofredores, de mais perto. As Congregações religiosas e as Conferências Vicentinas, numa rede de caridade, eram sinais visíveis e eficazes da acção próxima dos cristãos. O Episcopado português foi mobilizando os católicos para se organizar depois a Acção Católica portuguesa [1933].

Considerando estes aspectos circunstanciais, revelou-se então com muito interesse encontrar no processo [reservado] de Américo Monteiro de Aguiar - Presbítero, da Diocese de Coimbra, uma missiva inédita, simples e relevante, que nos dá alguma luz sobre um período menos conhecido, mas decisivo do seu itinerário biográfico. Nesta pobre coluna, vai a riqueza das suas palavras acutilantes e perseverantes, oportunamente dirigidas ao seu Bispo de Coimbra, D. Manuel Luís Coelho da Silva, que transcrevemos na íntegra:

21/8/1930

Excelentíssimo Senhor

Bispo Conde

Mais uma vez, in nomine Domini: não me prenda no Seminário, por amor do Sagrado Coração de Jesus - deixe-me ir por esse mundo fora.

Padre Américo!

PS. Sobre a carta oficial, no sábado, se Deus quiser, direi mais coisas interessantes.

Nesta altura, Padre Américo tinha 42 anos e uma ânsia enorme de semear Jesus nas almas e ajudar a dar de comer, vestir e curar os seus irmãos mais pobres, nos tugúrios, Lázaros e reclusos. Tendo entrado no Seminário de Coimbra em Outubro de 1925, de Julho de 1929 a Janeiro de 1940, dormiu, por esmola do seu Prelado, nas palhas do Seminário, conforme gratamente lembrou. Deixou as suas marcas, também em Coimbra, em 1926, a celebração do 7.º centenário da morte de S. Francisco de Assis. Neste sentido, foi-se reavivando a faceta franciscana de Padre Américo (que tinha sido noviço - Frei Américo de Santa Teresa), desejando ardentemente anunciar a Boa Nova da salvação, em pobreza e caridade, pelo extraordinário exemplo do santo Poverello: Todo ele, como viva brasa acesa, aparecia absorvido das chamas do amor divino (S. Boaventura). Padecendo de esgotamento, ainda insistiu (em 1929 e 1931) na readmissão à Ordem dos Frades Menores, o que não se chegou a concretizar. Terá sido provavelmente a mão do seu Bispo, D. Manuel Luís, que o aceitou no Seminário de Coimbra e o ordenou de Presbítero, a segurá-lo na Diocese de Coimbra, ao fazê-lo seu esmoler privilegiado, enviando-o como visitador e recoveiro dos pobres. É de notar, ainda, que foi muito marcante a visita do Padre Matéo, grande apóstolo do Coração de Jesus, a Portugal (onde chegou no final de 1927), e que deixou nele e em muitos cristãos (e pessoas de boa vontade) uma viva impressão, levando-o a exclamar assim: É próprio dos grandes corações chorar a miséria dos mais; nenhum tão grande e misericordioso como o Coração de Jesus.

Conforme consta no citado processo presbiteral, foi sendo designado para outros serviços eclesiais. Da Sopa dos Pobres, no jornal Correio de Coimbra, desde 1932, é o próprio que vai tecendo notas semanais, com compaixão pelos pobres e beleza literária: O nome que se vê no lugar do autor, é única e simplesmente o do humilde ouvinte das queixas do Pobre que escreve dentro da mansarda o que eles ditam a pedir pão. Por isso mesmo tu choras ao ler, como eu também choro ao ouvir.

Uma dúzia de anos depois (1944), chegou finalmente a vez d'O Gaiato, como defensor activo dos direitos da Criança, pois a sociedade deve pão e instrução aos filhos de ninguém, que por isso mesmo são os nossos filhos.

Padre Manuel Mendes