PÃO DE VIDA

Ajudar a viver

Eu fui ao hospital das almas, à Igreja. Aí, ao menos, recebem-vos, deitam-vos, tratam de vós; não se limitam a dizer-vos, virando-vos as costas, assim como na clínica do pessimismo, o nome do mal de que se sofre.

[Huysmans, En Route, 1895.]

Amanhã, dia 20 de Fevereiro, será discutida e votada, na Assembleia da República, uma lei para despenalizar a eutanásia em Portugal. Esta matéria tem mobilizado vários sectores da sociedade portuguesa, de forma transversal, que não se conformam com a forma como se tenciona legislar neste âmbito tão sério da vida humana, sem um debate tão amplo quanto possível, sério e aprofundado. Poderá acontecer que tais pedras vão acabando por deslizar e se vá deixando para as gerações vindouras uma avalanche de retrocesso civilizacional... Será que os exemplos negativos nalguns países, ditos modernos, não abrem os olhos aos incautos?... Para os cristãos, a vida humana - desde a concepção até à morte natural - é sagrada, porque tem o seu fundamento em Deus criador: Não matarás [Ex 20, 13].

Nesta hora muito importante para a sociedade portuguesa, é de [re]ler uma Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, sob o título Eutanásia: o que está em causa? Contributos para um diálogo sereno e humanizador [Fátima, 8-III-2016]. Neste texto seguro, é afirmado: por eutanásia, deve entender-se uma 'acção ou omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de eliminar o sofrimento'. A ela se pode equiparar o suicídio assistido, isto é o acto pelo qual não se causa directamente a morte de outrem, mas se presta auxílio para que essa pessoa ponha termo à sua própria vida. E, ainda: Não podemos ignorar que, entre nós, uma grande parte dos doentes, especialmente os mais pobres e isolados, não tem acesso aos cuidados paliativos, que são a verdadeira resposta ao seu sofrimento. E conclui assim: [A misericórdia] leva a ajudar a viver até ao fim. Não a matar ou a ajudar a morrer.

Morrer não é o contrário de viver, mas de nascer. Termina a existência temporal, pois a vida não acaba, apenas se transforma, como afirma S. Paulo. Acontece que a existência humana neste mundo exige muitos cuidados e respeito, como seres quase divinos. Não é lícito a ninguém destruir o dom da vida humana, como rezam os Mandamentos: Não matar nem causar dano no corpo ou na alma a si mesmo ou ao próximo. O preceito relativo à inviolabilidade da vida humana está no centro dos Dez Mandamentos. Daí que seja peremptória a Evangelium Vitae [n. 40], do Papa João Paulo II [Roma, 25-III-1995]: Da sacralidade da vida dimana a sua inviolabilidade, inscrita desde as origens no coração do homem, na sua consciência. A pergunta 'que fizeste' [Gn 4, 10], dirigida por Deus a Caim, depois de ter assassinado o irmão Abel, traduz a experiência de cada homem: no fundo da sua consciência, ele sente incessantemente o apelo à inviolabilidade da vida - a própria e a alheia - como realidade que não lhe pertence, pois é propriedade e dom de Deus Criador e Pai.

A eutanásia mata a vida humana, pelo que não há o direito de ninguém matar ou de se matar. Isto é muito claro, apesar de todas as deficiências no respeito pela dignidade humana e de haver muitas pessoas que vegetam, ao longo da sua vida, devido à sua idade e às doenças, e às falhas nos cuidados de saúde.

Pode afirmar-se, numa perspectiva cristã, que a vida e a saúde são dons - são dádivas. Os pais são um instrumento para a transmissão da vida. E os médicos e enfermeiros e outros profissionais de saúde e demais cuidadores colaboram na conservação da vida humana. Assim sendo, há o dever de proteger a vida humana; e a sociedade deve criar condições para a proteger, de tal modo que seja vivida dignamente. Nesta linha, é crucial salientar a ética do cuidador. Mais, a nossa sociedade há-de preocupar-se e empenhar-se profundamente numa rede de cuidados continuados e paliativos, de âmbito nacional e acessível a todos os cidadãos, destinados a tornar o sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao mesmo tempo ao paciente um adequado acompanhamento humano [Evangelium Vitae, n. 65].

Neste sentido, a eutanásia não se trata simplesmente de uma problemática religiosa, mas diz respeito a todas as pessoas, pois está em questão a sobrevivência e elevação civilizacional de qualquer sociedade, que se preze pela defesa e promoção da vida humana, desde o ventre materno ao ocaso. Bastam tantos sinais negativos, em várias épocas históricas, como no século XX, com desgraças enormíssimas, v.g.: da Shoah aos Gulag.

Dá mesmo que pensar o testemunho forte do convertido Joris-Karl Huysmans [1848-1907], amigo de Zola, que exclamou: Deus não é muito exigente para se contentar, para trazer a ele pessoas como eu! E, é conhecido que suportou heroicamente, sem um repelão de desespero, quasi com amor e sede de sofrer mais, os horrores de um cancro na boca... Porém, com conhecimentos suficientes, que a ciência e a técnica, e especialmente o amor e a justiça ajudem a debelar sempre o sofrimento humano. O Padre Américo afirmou claramente: De que serve a ciência no homem se ela não é posta incondicionalmente ao serviço e a bem da humanidade' 'Dai de graça o que de graça recebeis - eis o fundamento. E, ainda: Eu quero viver, viver, viver.

Aos amigos Luís Silva [Aveiro] e Prof. Vilaça Ramos [Coimbra], entre muitos outros lutadores por boas e perenes causas, que a vossa tenacidade seja uma lição destemida, na defesa da vida humana.

Só Deus é dono da vida!

Padre Manuel Mendes