PÃO DE VIDA
Stat Crux dum volvitur orbis
Numa carta [dactilografada] importante de Américo Monteiro de Aguiar, de 17 de Outubro de 1923, para o seu amigo Simão Neves, em que deu notícia da sua ida para um convento de franciscanos, na Galiza, com a nota de confidencial, em post scriptum escreveu: Compre o 'Deserto' de Manuel Ribeiro e compre 'A Catedral' do mesmo. Note, quando li 'O Deserto' já estava a preparar as m/ cousas para seguir para o Convento, por isso não julgue que o meu passo são influências do livro. Não.
Importa situar, de relance, estes conhecidos romances de Manuel Ribeiro [1878-1941]. Foi um activista sindical e na I Guerra Mundial refugiou-se na Sé de Lisboa, o que se traduziu no seu primeiro romance - A Catedral [1920]. Depois, foi um dos fundadores do jornal A Batalha, que conduziu à criação da Federação Maximalista Portuguesa [1919], embrião do Partido Comunista Português. A provação sofrida no cárcere, onde conheceu o Padre Cruz, revelou-se uma etapa crucial no seu percurso espiritual. O seu amigo Sobral Campos confirmou isto mesmo: O Limoeiro marcou na vida deste homem, deste idealista e deste escritor o encerramento de uma etapa e o começo de uma outra. Depois, por influência de Mons. Pereira dos Reis [1879-1960], passou oito dias no convento cartuxo de Miraflores, que se tornou numa experiência fundamental da sua vida, expressa no seu segundo romance - O Deserto [1922]. Manuel Ribeiro chegou a Burgos em 25 de Agosto de 1921 e, no seu espólio, encontra-se um postal [de 28-8-1921] que escreveu à sua mulher Mariana Carolina e comprova essa sua estadia: Estou há dois dias no convento da Cartuxa. Muito bem recebido. Alimentação boa, mas sempre de magro. Deito-me 8 horas, levanto-me meia-noite para assistir aos ofícios no coro. Silêncio e isolamento absolutos. É inútil escrever, a não ser por alguma coisa extraordinária.
Esta ligeira abordagem daqueles romances, lidos e citados por Américo de Aguiar num momento capital da sua vida, em especial O Deserto, visa encontrarmos ligações evidentes ao cerne da sua espiritualidade. De um exemplar desse belíssimo livro [n. 582, assinado pelo autor e encadernado] que temos à mão, com gravuras extra-texto, referimos um elogio da Cartuxa, com traços interessantes dessa Ordem contemplativa, também da nossa grande admiração. Eis: Pensai que se ela dura há mais de oito séculos, resistindo sempre aos múltiplos choques dos acontecimentos terrestres que teriam feito sossobrar uma instituição menos solidamente estabelecida, e que se ela sobrevive às convulsões políticas e sociais que tantos tronos derrocaram e tantas coisas que pareciam eternas destruíram, é porque os Cartuxos apaixonados pela beleza de Deus, cativos da sua bondade e do seu amor, se uniram a Deus que não muda nunca e os torna d'alguma sorte participantes da sua imutabilidade, recebendo também a força contra a qual se despedaçam as potências do mal. Lembrai-vos sempre que Deus é o supremo Senhor, haja ou não quem o negue ou contrarie, e que o que Ele quer que se realize realizar-se-á, apesar da oposição de todos os seus inimigos e não obstante a tolice, a fraqueza e a cobardia dos que são seus amigos ou supõem sê-lo.
A Ordem dos Cartuxos teve origem em S. Bruno. Nasceu cerca do ano 1030 e chegou, ainda jovem, a estudar na escola catedralícia de Reims, onde se doutorou e foi reitor da Universidade, sendo um mestre de renome: um homem prudente, de palavra profunda. Experimentando o desejo de uma vida mais entregue a Deus - de acordo com Un cartujo de Aula Dei, em La Caruja - San Bruno y sus Hijos [1949] - no mês de Junho de 1084, Bruno e seis companheiros que se lhe juntaram, chegaram à região de Grenoble, da qual era Bispo o seu discípulo Hugo de Chateauneuf.
Antes, este santo Bispo teve um sonho: viu que desciam do alto e caiam aos seus pés sete estrelas, que se elevavam de novo e continuaram através de montes e vales o seu caminho até um lugar selvagem, conhecido com o nome de Chartreux, onde desapareciam. Ao chegar aí, no seguimento daquelas estrelas misteriosas, Hugo viu grupos de anjos que se afanavam em levantar um edifício sobre cujo tecto, terminada a obra, reapareciam as estrelas. A chegada de Bruno e dos seus companheiros, pedindo a bênção episcopal, deu-lhe a chave para interpretar aquele sonho profético, cujo relato foi ouvido da boca do próprio Bispo por D. Guigo, quinto Prior da Grande Cartuxa, que pôs por escrito os Costumes da Cartuxa [1127]. Guiado pelo Bispo, Bruno dirigiu-se com mais seis companheiros ao lugar indicado pelas sete estrelas: um sítio solitário nas montanhas da sua diocese, no maciço montanhoso de Chartreux, que dará o seu nome a esta Ordem. Ali construíram as primeiras celas do seu ermitério, com pedras e ramos de árvores, à maneira de choças. O brasão da Ordem dos Cartuxos é formado por um globo, coroado por uma Cruz, encimada por sete estrelas, e que leva debaixo o seu lema: Stat crux dum volvitur orbis [A cruz permanece enquanto o mundo gira].
É conhecido o axioma: Cartusia nunquam reformata, quia nunquam deformata [a Cartuxa nunca foi reformada, porque nunca foi deformada]. Não ter sido reformada é um facto indiscutível e extraordinário na história das Ordens antigas, como é reconhecido na Constituição Apostólica Umbratilen, de 8 de Julho de 1924, em que o Papa Pio XI aprovou os Estatutos da Ordem dos Cartuxos e se lê o seguinte: É coisa bem sabida que os Cartuxos de tal maneira conservaram no transcurso de quase nove séculos o espírito do seu Fundador, Legislador e Pai, que, ao contrário do sucedido a outras religiões, não teve a sua Ordem necessidade de correcção alguma ou de reforma em tão largo espaço de tempo.
Numa mensagem, por ocasião do IX centenário da morte de S. Bruno [1101-2001], o Papa João Paulo II sublinhou: Os seus irmãos observaram que 'tinha sempre o rosto repleto de alegria e a palavra modesta. Juntava à autoridade de um pai a ternura de uma mãe' [Do pergaminho fúnebre]. O Papa Bento XVI, numa homilia [em 9-X-2011], na igreja da Cartuxa da Serra S. Bruno, comentou assim o lema dos cartuxos: A Cruz de Cristo é o ponto firme, no meio das mudanças e dos transtornos do mundo. A vida numa Cartuxa participa da estabilidade da Cruz, que é a de Deus, do seu amor fiel. Permanecendo solidamente unidos a Cristo, como ramos à videira. Também vós, Irmãos Cartuxos, estais associados ao seu mistério de salvação, como a Virgem Maria, que junto da Cruz stabat, unida ao Filho na mesma oblação de amor. Assim, como Maria e juntamente com Ela, também vós estais profundamente inseridos no mistério da Igreja, Sacramento de união dos homens com Deus e entre si.
Foi esta imensa riqueza teológica, eclesial e vocacional que o Padre Américo quis deixar gravada num cruzeiro [de granito, com uma cruz latina], com um lema semelhante, no largo fronteiriço à Capela da Casa do Gaiato de Paço de Sousa. De facto, no ante-rosto da base, está a inscrição: Crux stat dum mundus volvitur. No rosto da base: Ano Domini 1943. Uma réplica foi erigida, em 1962, na casa-mãe da Obra da Rua.
Padre Manuel Mendes