PÃO DE VIDA
Levar pela mão
Foi esta aonde a Obra da Rua nasceu; aquela aonde mais sofri; por isso mesmo a que mais amo.
Padre Américo
Às três badaladas da tarde do dia 11 de Janeiro, depois de entrar pela antiga porta do velho solar - que ficou para a história como casa-mãe da Obra da Rua, onde Padre Américo acolheu os três primeiros gaiatos das ruas de Coimbra - o Bispo de Coimbra, D. Virgílio Antunes, veio presidir a uma Eucaristia vespertina do Baptismo do Senhor, na comemoração dos 80 anos de muitas vidas. Nesta celebração, participaram membros da Obra e muitos amigos, em ambiente muito festivo, testemunhando a sua alegria por este acontecimento que envolveu os actuais rapazes e colaboradores. Foi o momento central para lembrar gratamente e com saudade todas as vidas marcadas por este sonho de uma família cristã de garotos da rua. Outrora denominada Casa de Repouso do Gaiato Pobre, nasceu em 7 de Janeiro de 1940, festa do Santíssimo Nome de Jesus.
No livrito Obra da Rua, das primícias, dado à estampa em 1942, Padre Américo escreveu assim, com alegria: Acabaram-se as horas angustiosas de não poder remediar o garoto doente da mansarda, e de dizer que não, nas colónias, ao rapaz que me pedia para ficar mais tempo. Tinha uma casa para eles!/ Podia tomar agora o pequenino doente nos meus braços, retirá-lo do casebre onde tudo falta, e deitá-lo eu mesmo na sua cama, onde há sol em abundância, regalado./ Podia atender num instante e deixar ir para Miranda o traquina que por vezes me sai ao caminho - Deixe-me ir hoje consigo. Podia.
De facto, em tempos muito difíceis, surgiu esta novidade de acolhimento na Diocese de Coimbra, 15 anos depois de Américo Monteiro de Aguiar [AMA] ter sido recebido no Seminário com 38 anos (em 1925). Ordenado Presbítero com 41 anos (em 1929), deu a sua vida pelos pobres nesta Diocese e noutros lugares pátrios, onde se compadeceu da miséria dos seus irmãos mais fracos. Em 1943, teve de subir ao Porto com a mesma preocupação e compaixão; e foi avançando pelas margens do Sousa, dos seus avós e pais e da sua meninice feliz, de amigo de Deus e dos pobres. Na verdade, em Salvador de Galegos, quando era pequenino, doze dias depois de ser dado à luz por sua mãe Teresa Rodrigues, recebeu o Baptismo, e foi-lhe dado o nome do Bispo do Porto de então - Américo. Seu pai Ramiro Aguiar orientou-o para o comércio, numa prole de mais sete. Contudo, foi crescendo com a força do Espírito Santo!
Mãos amigas registaram imagens e palavras dos vários momentos - especialmente Eucarísticos, e ainda culturais e conviviais - de uma comemoração simples, aberta, muito participada e verdadeiramente eclesial. Para que não se percam e meditem, mesmo com a marca da oralidade, festejamos nesta coluna tal acontecimento de há oito décadas com parte da homilia do pastor da diocese conimbricense. Era a véspera do início do jubileu [1220-2020] dos mártires de Marrocos e de Santo António - também de Coimbra. Ora, eis:
Todos nós (ou quase todos) recebemos o Baptismo. E, hoje, refiro esta circunstância porque o texto do Evangelho nos recordava o Baptismo de Jesus; e, portanto, nos faz pensar nesta realidade do Sacramento que foi para nós a porta da Fé, pelo qual entramos na Igreja, no Corpo de Cristo. Recebemos o dom do Espírito, que há-de fazer de nós pessoas verdadeiramente de Deus e pessoas para os outros - para os irmãos.
Frequentemente, focamo-nos muito naquele acontecimento momentâneo, poucos minutos, pouco tempo, em que se celebrou o nosso Baptismo. Ficamos com a nossa memória, porventura por meio das fotografias, das imagens, da recordação familiar, seja do que for, desse acontecimento primeiro. Quando o Baptismo é uma realidade da vida toda do cristão - de todos os dias, de todas as horas, de todos os momentos. Constitui-nos verdadeiramente filhos de Deus, irmãos uns dos outros em Jesus Cristo, membros da Igreja, seu Povo Santo; e isso tem consequências. Olhamos para a atitude de Jesus que, sendo Filho de Deus, quis passar por aquele mesmo ritual num momento muito concreto da Sua vida, mas um momento programático da totalidade do Seu ministério e da Sua vida entre nós - programático! Dali para a frente Jesus, que já vivia na vontade do Pai, voltou-Se não exclusivamente para o Pai, mas abriu os olhos, abriu o coração, abriu os braços na atitude de Quem Se volta para os irmãos, de Quem procura viver a vida toda. E Ele, como Filho de Deus, cheio do Espírito, viveu a totalidade da vida no louvor a Deus, o Pai, e na disponibilidade para servir os irmãos.
[...] Nesta celebração da Eucaristia, é evidente que temos sempre diante de nós este testemunho do Padre Américo. Foi um sacerdote ordenado na nossa Diocese de Coimbra e constitui uma grande honra para nós termos acolhido na Diocese de Coimbra o Padre Américo como um dos seus sacerdotes, como um dos seus presbíteros, termos acolhido a fundação desta Casa, como ponto de partida, por assim dizer, para uma Obra muito mais vasta que depois veio a desenvolver-se, conforme nós sabemos. E ainda mais pelo facto de se estar a desenvolver o Processo da sua Beatificação e da sua Canonização, que está a dar passos bem firmes, porque tem um fundamento muito sólido por detrás: há multidões de homens e mulheres que seriam capazes de prestar testemunho em favor da santidade do Padre Américo, como esperamos que venha a acontecer, porque o conheceram dia após dia, porque ouviram as suas palavras fortes, veementes, daquele grito de quem não está bem se se volta só para si, mas fica feliz se se volta para os outros. E viram sobretudo as suas mãos abertas - as suas mãos abertas - a ir ao encontro dos mais pobres, ao encontro dos rapazes da rua ou ao encontro dos doentes que não têm ninguém que olhe por eles. E portanto, de uma forma genérica e generalizada, este abraço de caridade sem o qual ninguém pode ser feliz, de que todos precisamos. Mas que precisam sobretudo aquelas pessoas que na vida foram mais deserdadas ou pelas questões familiares ou económicas ou da saúde ou sejam elas quais forem.
Há pouco, o texto da Escritura, na primeira leitura, dizia que Deus quer levar pela mão todos e cada um dos membros do seu Povo. Levar pela mão para um lugar onde haja justiça, onde haja paz, onde todos se sintam bem. E Jesus, que passou por este mundo fazendo o bem, procurou levar pela mão homens e mulheres de todas as condições, sobretudo os mais pobres, os mais fracos, os doentes, os pecadores. E a Igreja de hoje, todos nós e cada um de nós, havemos de fazer tudo para levar pela mão com caridade e com amor os homens e mulheres nossos irmãos. E ao mesmo tempo para permitirmos - que às vezes não é a parte mais simples do processo - que outros nos levem pela mão também a nós, que o próprio Deus nos leve pela mão também a nós, porque isso exige (como sabemos) muita humildade e muita consciência da nossa debilidade, dos nossos limites, da nossa pobreza e até do nosso pecado. Damos, por isso, imensas graças a Deus por este acontecimento que estamos a celebrar. E gostaríamos sobretudo de pedir-lhe que nos ajude a renovar a Igreja que nós somos, este Povo de baptizados, às vezes tão fechado sobre si mesmo, tão voltado para o seu interior, tão espiritualista, tão pouco encarnado nas realidades de todos os dias. A sentir tão pouco os problemas e as dificuldades de todas as pessoas, particularmente aquilo a que o Papa Francisco tem chamado as periferias da humanidade, que não significa somente viver em lugares mais distantes, mas significa estarem irradiados do seio da convivência da comunidade humana ou da própria Igreja, onde todos nos havíamos de sentir muito amigos e muito irmãos. E, portanto, onde havíamos de construir juntos a tal Paz, Justiça ou Amor, que são o testemunho central da Pessoa, das palavras e da vida do Senhor, Jesus Cristo.
No final da festiva Eucaristia, o Sudu colocou uma capa negra nas mãos do Bispo de Coimbra, para nunca se esquecer destes meninos que adoptaram Coimbra como a sua terra! Foi assim que Padre Américo se cobriu e abrigou muitos pobres, sem esquecer o desejado burel franciscano que também recebeu. Com amor à Igreja Católica, na esteira de S. Vicente de Paulo e S. João Bosco, foi um grande apaixonado por Jesus e devoto de Maria. Nessa tarde inesquecível, em sentido silêncio, foi obrigatório escutar a voz de Pai Américo, falando sobre a Obra da Rua, que nasceu muito pequenina, e da doença do amor, que mata... Em palco, os Rapazes apresentaram bem alguns passos da sua vida - do seu Caminho da Luz, seguidos de belos cânticos (Pai Nosso, Melhor que Jesus não há e Oração de S. Francisco) e do Hino da casa-mãe. A fechar, Padre Júlio referiu: a nau da Igreja a que todos pertencemos, continuando confiantes e unidos ao nosso pastor, à nossa Igreja, ao Senhor que nos chamou e nos mandou pelo mundo fora; nós só teremos que dizer o nosso sim. Todos os participantes desta tarde feliz testemunharam a proximidade e amizade do Bispo desta Diocese, que se fez acompanhar das irmãs da Aliança de Santa Maria.
O testemunho cristão do Venerável Padre Américo - de fé, esperança e caridade - certamente despertará a responsabilidade dos seus filhos neste tempo e inquietará vocações eclesiais de serviço aos mais pobres - a que chamou de semeadores do eterno. A propósito deste encontro eclesial, é de reler o que escreveu Padre Américo, na sua fidelidade à Igreja: Em boa hora se fugiu à ideia, desde o começo, de fundar uma congregação religiosa de padres para a Obra da Rua; e desta sorte é ela, a Obra da Rua, uma obra social da Igreja, aonde os nossos Bispos estão em casa.
Eis, ainda, que às doze badaladas do dia 12 de Janeiro, pelo portão em frente ao cruzeiro, inesperadamente entrou o Mário Diniz de Carvalho, que foi dos três primeiros rapazitos. Era esperado para a véspera, mas veio no Domingo para a festa, que assim continuou... Com 92 anos, saudoso, subiu a escadaria da casa-mãe e abeirou-se da janela dum quarto onde dormiu numa cama lavada, no início de 1940. Nessa parede altaneira, Padre Américo pôs (e muito bem) um belo azulejo da Imaculada Conceição. Veio e foi, até à próxima, levado pela mão. Para o Senhor, mil anos são como o dia de ontem que passou!
Padre Manuel Mendes