PÃO DE VIDA

Mais de 80 Anos de vidas

O dia 12 de Dezembro, em que foi dada a boa notícia do decreto relativo à promulgação das virtudes heróicas do Servo de Deus Padre Américo, uma Nota da Conferência Episcopal Portuguesa afirmou com inteira justiça e clarividência pastoral: Chamado e conhecido carinhosamente por Pai Américo, este Padre diocesano, amigo de Deus e dos Pobres, há muito santo no coração do povo, é uma referência que ajudará a despertar a sociedade e a Igreja para a maior atenção aos pobres, bem como o serviço e a entrega aos últimos, no nosso tempo marcado pela urgência da Caridade e da Misericórdia.

Na grande alegria e no compromisso desta esperada novidade, do Papa Francisco à Igreja Católica em Portugal, ao aproximar-se o dia feliz da celebração do Natal de Jesus, tivemos de enfrentar chuva intensa e vento forte, por estas bandas de Coimbra, em que o Mondego galgou imenso as suas margens, para irmos com o Marcelino aos currais das ovelhas. E, ao colocarmos boa palha de aveia numa manjedoura, eis que fomos surpreendidos pelos balidos de um cordeirito, junto de uma mansa ovelha que há pouco o tinha parido sem ajuda. Foi uma notícia que encheu de encanto quem viu esta cria franzina, mas bem protegida e a saltar num rebanho a crescer e a tratar no quotidiano. Num lugar pobre e simples como este, de mulher, Maria, nasceu Jesus para salvar toda a humanidade. Haverá, então, algum problema em ficar com o cheiro das ovelhas, deixando juízos farisaicos contra a Igreja, se foram pastores que reconheceram logo o Salvador do mundo e quantos milhões de cristãos dão as suas vidas até ao derramamento de sangue?... Nestes tempos de críticas ferozes, quando olhamos para o horizonte e vemos névoas a chegar, deu-nos para fazer uma relação com a Igreja que amamos, que nos parece um extraordinário bando de andorinhas radiantes pelo céu e miríades de estrelas tão distantes e bem próximas de nós com o seu brilho! Porém, se cai alguma delas, mais frágil, aqui d'el rei que acabou a primavera...

Quando se sofriam intensamente as consequências da II Guerra Mundial, como a escassez alimentar, o Padre Américo revelou-se um exemplo eclesial profundo, no seu tempo e para os vindouros, muito próximo das ovelhas feridas e perdidas. E, entre tantas páginas de antologia, deixou (em 1942) esta confidência da sua tarimba eclesial com os últimos, em sítios pouco recomendáveis, numa bela síntese do seu serviço aos pobres e enfermos: Certa maré, entrei na casa de uma leprosa de quem se não fazia caso, por medo do contágio. A roupa era aos montes, que as lavadeiras não lhe pegavam./ - Eh! Tantos farrapos, disse./-Sim, padre; tudo farrapos, menos o meu sofrimento!/ Podem fazer papéis velhos do relatório do Lar [do ex-Pupilo dos Reformatórios do País], sim; nunca, porém, da sinceridade, dos cabelos brancos, da vida gasta, do amor apaixonado - do meu sofrimento. Nunca.

No dia 7 de Janeiro deste ano da graça de 2020, celebrando a Eucaristia nos 80 anos de vida da casa-mãe da Obra, desde aquele dia do Santíssimo Nome de Jesus, para sermos fiéis aos acontecimentos fundantes, socorremo-nos da pena exímia do Padre Américo e aqui deixamos também uma simples memória muito grata, com algumas palavras experientes e sábias do fundador da Obra da Rua, lembrando todos os rapazes, padres, senhoras, colaboradores, amigos e amigas que deram vida durante mais de oito décadas a esta grande família, que nasceu muita pequenina, como é costume das coisas grandes, no dizer de Pai Américo (em gravação áudio, que se conserva).

Em 1942, no livro Obra da Rua, o Padre Américo situa o sítio e lugar do rastilho da Obra com um realismo doloroso e perturbador: Foi no Beco-do-Moreno, em Maio de trinta e cinco, que o Miúdo me apareceu. Enquanto que as grandes artérias das grandes cidades mudam frequentemente de nome, consoante as paixões mai-los acontecimentos do tempo, os becos e vielas das mesmas tomam a sorte de quem lá mora - nem nome, nem condição. Ninguém faz caso./ Passava eu por ali, naquele mês e ano, quando um garoto da rua embarga o meu caminho, num angustioso e imperativo venha ver o meu pai que está na cama e a gente passamos fome./ O casebre era ali mesmo. Subi a escada apoiado ao corrimão e aos ombros do rapaz, sempre a dizer-me baixinho - não caia, meu senhor; que se os perigos dos Alpes são grandes, pelas alturas, aqui não são menores, pela escuridão./ Entrei no cubículo./ Coisas e formas emergiam da sombra, lentamente. Reconheci o homem com quem falava. Tratava-se de um tipógrafo da Imprensa da Universidade, mandada fechar, ao tempo, por ordem superior e hoje abrigo de pombas nos buracos das paredes./ Quantas vezes não fui eu assobiado às portas daquela casa, só porque uso batina e digo missa no altar - quantas! Nós eramos conhecidos. [...].

Num manuscrito, do qual já demos conta e foi acautelado, sobre os primórdios da Obra da Rua, o Padre Américo traçou com pormenor as origens da sua preocupação e grande compaixão pelos rapazes da rua, cujas primeiras Colónias de Férias situa em 1935. Rememoramos o início dessas interessantes notas históricas: Na Páscoa de 1935 fui visitar o então Pároco de São Pedro d'Alva, [José Augusto Ferreira] Simões e Sousa, e este levou-me a ver um curso nocturno para os rapazes da terra, de leitura e catequese. Era este curso instalado em um grande casarão desabitado há muitos anos, cujos donos viviam em parte incerta no Brasil./ Casa ampla e arejada, horizonte vasto, desocupada nos meses de Verão, todos estes predicados levantaram no meu íntimo a esperança e desejo, há muito tempo latentes, de me alojar ali no mês de Agosto, já daquele ano, com umas dúzias de garotos do tugúrio, em Coimbra. Tinha então à minha conta, e frequentava vezes amiúde, uma família no Beco do Moreno, onde havia cinco filhos raquíticos e esfomeados; e estas crianças, assim doentes, foram o rastilho da Obra. Já tinha casa. Soletrei a ideia, a medo, ao Padre Simões e Sousa, aquando daquela visita, e o bom sacerdote animou-me, pôs a casa ao meu dispor e prometeu auxiliar. O tempo corria. Dentro em breves meses vinha o mês de Agosto: isto era em Abril. Simões e Sousa não cessava de me escrever: 'que não deixasse arrefecer a ideia' [...]. Esta ideia, colhida na experiência da vida das Colónias, levou-me a comprar casa adequada, tendo agora as Colónias residência própria em Miranda do Corvo, na quinta de São Braz, que se chama, e de facto é, Casa de Repouso do Gaiato Pobre. Custou 40 contos e pagou 5 contos de siza. [...].

Na primeira página d'O Gaiato, de 20 de Janeiro de 1951, descreveu com pormenor a chegada dos pioneiros ao lugar do seu repouso: Foi no dia 7 de Janeiro do ano de Cristo Jesus de 1940. Da cidade de Coimbra, comigo, partiram três menores num carro ligeiro. Seguimos Estrada da Beira até ao entroncamento da Lousã e dali metemos a caminho de Miranda do Corvo. Era noite. Choveu todo o santo caminho; chuva pesada e fria. O pequeno solar, berço da Obra da Rua, tinha sido adornado com a indispensável mobília, tudo muito pobre, aonde Francisco de Assis diria bem. A mesa estava posta. A governante tinha preparado a ceia. Sentámo-nos, eles mais eu. Eram três pequeninos mendigos das ruas de Coimbra. Pela primeira vez comeram de garfo, viram uma cama lavada, sentiram a presença de um amigo! Um sentiu-se mal e teve de sair da mesa. Era canja de galinha. Estimava tanto os meus hóspedes que lhes mandei preparar o melhor. Afeito ao caixote do lixo não suportou o manjar! Deu-me o aviso e eu tomei a primeira lição...

No segundo dia do mês primeiro de 2020, em Coimbra, depois de consulta do Norberto, no Hospital Pediátrico, mais o seu irmão Marcelino, foi possível visitar um dos três primeiros gaiatos, de há oito décadas: José Araújo Pereira, que ia fazer 89 anos, três dias depois, e chorou de alegria ao ver o retrato do rosto do seu amigo, que lhe matou a fome, de capa traçada, numa pagela com a oração para a Beatificação do Venerável Padre Américo! Quando aquele rapazito traquina apanhava várias pedritas, junto ao local onde se encontra enfermo esse ancião, dissemos-lhe para as deixar ficar no chão; todavia, acabou por trazer uma delas até Casa, escondida num bolso, e que depois veio a mostrar. Então, foi posta como sinal desafiante, à frente de um crucifixo, no altar. Logo o miúdo rematou: - Afinal, sempre deu jeito!... No final da Missa festiva dos 80 anos, foi convidado a colocá-la debaixo de uma capa negra, para se ver que não devemos atirar pedras a ninguém. Que as pedras atiradas aos que servem os pobres e aos mais débeis se transformem em pão e não arrefeçam assim o ânimo de quantos comungam desta ideia, tirada do Evangelho de Jesus e que nesse dia foi proclamado: Dai-lhes vós mesmos de comer. Assim, com gestos visíveis de verdadeira caridade e trabalhando afincadamente pela justiça, ajuda-se os olhos humanos a ir entrando no mistério da Verdade eterna: Deus é Amor!

Afinal, naquele cubículo de escuridão do Beco do Moreno, em Coimbra, foi dada à luz a Obra da Rua, nos braços de Padre Américo, com licença do seu Bispo, D. Manuel Luís. Por isso, se ora em comunidade, na aurora e ao cair da noite, pela Luz do mundo: Pelo Santíssimo Nome de Jesus, venha a nós a salvação!

Padre Manuel Mendes