PÃO DE VIDA

De ontem e de hoje - é Natal de Jesus

Em 2 de Fevereiro de 1925, o Bispo de Coimbra, D. Manuel Luís Coelho da Silva, publicou uma Instrução pastoral intitulada A Vida das Criancinhas, que constitui um brado eloquente contra a elevada mortalidade infantil, referindo estas duras estatísticas: Em Portugal sobre 1000 crianças que nascem, 137 morrem no 1.º ano da sua existência; a mortalidade dos sobreviventes é no 2.º ano 78 por 1000, e cada uma das que excedem esse período, tem ainda até aos seus 5 anos 58 probabilidades de morte. Por isso dizem alguns médicos higienistas que a criança que nasce, não tem mais probabilidades de viver um ano do que um velho de 80 anos. Nesse precioso opúsculo, deu ensinamentos de médicos abalizados e conselhos oportunos, afirmando: empregarei todos os esforços para que a higiene, especialmente a higiene infantil, chegue a todas as camadas sociais; e, se com esta minha Pastoral eu conseguir salvar a vida da alma de uma só criancinha que seja, já me darei por devidamente compensado. E aos seus Padres, entre outras indicações, disse assim: Segui o exemplo das grandes Ordens Hospitaleiras, e dum S. João de Deus, dum S. Camilo de Léllis, dum S. Vicente de Paulo [...].

Nesse ano também, Sebastião Cabral da Costa Sacadura deu à estampa o opúsculo A despopulação em Portugal e o aborto criminoso, no qual escreveu - e é pertinente lembrar: O título que conquistámos ao terminar os estudos nas nossas Faculdades de Medicina impõe-nos o dever de defender a vida humana, de empregar todos os esforços, de empenhar todas as energias, para arrancar às garras da morte as vidas que são confiadas aos nossos cuidados e ao nosso saber [...]. E, a terminar, faz uma pergunta de rasgo: Porque não se promulgam leis protectoras da mulher grávida, concedendo-lhe socorros não somente durante a gravidez mas ainda depois do parto e durante os primeiros anos dos filhos? Este médico exemplar deu um forte testemunho, ao fundar a primeira maternidade secreta para proteger raparigas abandonadas, como secção da Maternidade Abraão Bensaúde, em Lisboa [extinta em 1977].

Foi precisamente em 1925 que Américo Monteiro de Aguiar, vindo dos Franciscanos, em Vilariño de la Ramallosa [Galiza], foi recebido por D. Manuel Luís no Seminário Episcopal de Coimbra para iniciar a sua formação para o presbiterado. Naturalmente, as misérias humanas da realidade social, em especial de Coimbra, das quais foi tomando conhecimento directo, enquanto seminarista, inquietaram-no profundamente, como testemunhou em missiva para Simão Neves, de 30 de Janeiro de 1927: Vem aqui todos os dias certa mulher buscar uma panela de caldo para ela, uma filha e 4 netos, obra de ex-estudantes, ocupando todos seis um mísero cubículo sem luz nem ar. Todos os domingos eu desço aos claustros a dar-lhe uma pequena esmola com a qual ela paga parte da conta semanal do padeiro. Vemos, assim, que no contexto dos dramas sociais do seu tempo, a sua devoção pelos pobres desde pequenino e vários testemunhos de vida, como o do seu Bispo de Coimbra, deixaram marca indelével e foram fazendo caminho para ir dando a sua vida aos pobres, seus amigos, na Igreja. Nesses tempos de Coimbra, são de referir, pela sua proximidade aos pobres, v.g.: os Vicentinos, o Padre Luís Lopes de Melo [18-II-1885; 24-X-1951], as Criaditas dos Pobres, a Condessa do Ameal [D. Amélia Ayres de Campos].

De um opúsculo raro, das primícias institucionais, sob o título Casa de Repouso do Gaiato Pobre [Coimbra, 1941], da autoria de Padre Américo - do qual vimos um exemplar assinado pelo Padre Manuel J. [Joaquim] Gonçalves [n. 19-XII-1921] - vamos transcrever alguns parágrafos, com sabor a uma das fontes sobre as origens da Obra da Rua. Das primícias, eis:

Um padrezinho da cidade de Coimbra pediu e obteve licença do seu Prelado para visitar pobres e cuidar deles, dentro de suas próprias habitações, para melhor conhecer seus nomes e mais eficazmente os servir.

Nas visitas à mansarda e ao tugúrio, topava o visitador legiões de crianças esfaimadas, deitadas no chão estreme ou sobre rimas de cisco, à espera da Mãe, que tinha ido pr'ó rio, ou do Pai, que anda desempregado. E começou o dito padrezinho a dar preferência à sorte dos filhos, sem de todo descurar a dos pais.

Projectou organizar um pequeno grupo daquelas vítimas de fome lenta, e conduzi-las para qualquer sítio montanhoso, onde se lhes pudesse dar trinta dias de sol e de pão; e, do projecto ao acto, foi um tiro de espingarda.

No primeiro ano, conduziram-se vinte e sete gaiatos; no segundo cinquenta e três, e nos dois seguintes, chegou-se à casa dos duzentos, em cada ano.

As colónias ganharam fama num instante. O garoto fazia a revolução e vinha em pessoa, dar o nome e alistar «recrutas», nos primeiros dias de Junho, todos os anos. Trazia mais pobres e os mais abandonados das suas ruas, informado de que o benefício das colónias de campo era somente para os pobres - Eh pá, tu não vais, que és rico, exclamava! Para alguma coisa serve a desgraça!

As colónias eram superiormente dirigidas por estudantes da Universidade e do Seminário de Coimbra, rapazes dedicados e generosos, obreiros do Evangelho; e coadjuvados pelo próprio colono, a quem se marcava tarefa todas as noites, à hora dos conselhos e dos avisos. Era assim a vida das Colónias de Campo do Garoto da Baixa.

Mais próximos de 7 de Janeiro, então dia do Santíssimo Nome de Jesus, continuaremos com mais um naco dessa bela prosa, vivida em tempos de escassez de bens e de filhos ilegítimos e abandonados, sobre os primórdios da Casa de Repouso do Gaiato Pobre, que vai celebrar 80 anos de vida, no ano da graça de 2020!

Padre Manuel Mendes