PÃO DE VIDA
Com os Pobres
Passo simplesmente à tua porta, em silêncio, trazendo debaixo da capa os casos do dia
e o estigma deles no coração, e mais nada. O resto é obra da Deus.
Padre Américo
Não é possível ignorar, antes de mais, dois casos mediáticos que dizem respeito à vida humana, nascente, e ultimamente têm sido motivo de opiniões diversas, em Portugal: um menino sem rosto e outro encontrado no lixo. As rodas do nosso tempo são, de facto, outras... Não restam dúvidas que as crianças, cuja situação se discute, como uma imensidão delas, em tantos dramas humanos, são membros do tesouro humano, a cuidar. A imperfeição da vida humana é comum a todos os seres humanos, pois a fragilidade é inerente à condição humana e tem como consequência a mortalidade, que a redenção divina supera. Toda a carne é erva e toda a sua graça como a flor do campo [Is 40, 6]. Por respeito a todos os intervenientes, também ficamos em silêncio... Vamos, sim, pousar os nossos olhos em algumas afirmações importantes, de figuras eclesiais, de Roma a Portugal, sobre os pobres, que nos ajudam a perceber melhor o mundo em que vivemos, de contrastes extremamente dolorosos e inquietantes.
Numa Eucaristia, no dia mundial dos Pobres, em 17 de Novembro, na Basílica de S. Pedro, o Papa Francisco apelou a que não nos deixemos paralisar pelo medo do outro e do futuro. E apontou o caminho do serviço ao outro: o homem, o nosso próximo, vale mais do que dizem todas as crónicas do mundo. E concretiza, na humanidade ferida: Quantos idosos, quantos nascituros, quantas pessoas com deficiência, pobres, são considerados inúteis! Vamos com pressa, sem nos preocuparmos que aumentem os desníveis, que a ganância de poucos aumente a pobreza de muitos. Aos cristãos convida assim: é preciso falar a mesma linguagem de Jesus: a linguagem do amor, a linguagem do tu. [...] A Palavra de Deus incita-nos a um amor não hipócrita [Rm 12,9], a dar àqueles que não têm nada para restituir [Lc 14,14], a servir sem procurar recompensas nem retribuições [Lc 6, 35]. [...] Os pobres são preciosos aos olhos de Deus, porque não falam a linguagem do eu: não se aguentam sozinhos, com as próprias forças, precisam de quem os tome pela mão. Lembram-nos que o Evangelho se vive assim, como mendigos voltados para Deus. [...] Os pobres facilitam-nos o acesso ao Céu: é por isso que o sentido da fé do povo de Deus os viu como os porteiros do Céu. Já desde agora, são o nosso tesouro, o tesouro da Igreja. Com efeito, desvendam-nos a riqueza que jamais envelhece, a riqueza que une terra e Céu e para a qual verdadeiramente vale a pena viver: isto é, o amor! É notória a opção preferencial do Papa Francisco pelos pobres e aflitos, no próprio Vaticano, com serviços de cuidados humanos aos mais frágeis, bem como os apelos constantes e a proximidade aos últimos nas suas viagens apostólicas pelo mundo inteiro.
Numa conferência sob o título Com os Pobres, a 8 de Novembro, em Lisboa, D. Juan José Ornella, Arcebispo de Barcelona, num estilo cativante e profético, foi directo, dizendo: Os pobres são esquecidos porque incomodam. A terra é de todos e é uma injustiça que se passe fome. Indicou a necessidade de atacar e denunciar as causas da pobreza e criticou a Europa que perdeu a dimensão comunitária da vida e vive uma mercantilização da existência, lamentando-se: Hoje há indiferença. Passamos pelos que caem dos barcos, dos meninos que não nascem, passamos indiferentes aos que estão nas ruas. E questionou: Perante a avalanche de imigrantes na Europa, o que vamos fazer? Ninguém os quer. Não podemos socorrer todos, sem saber onde os colocamos. Mas o que estamos a fazer para que não tenham de sair? Quantos países cumprem o compromisso de dar uma percentagem da sua riqueza para os países mais pobres? E como invertemos isso? Nesta perspectiva, sugeriu: A acção pastoral tem de passar da reflexão para o coração, para a empatia. Isto é um acto de empatia. Mas tem de passar, depois, pelas mãos; tem de passar pelo nosso bairro e pelas nossas acções. Sobre rostos dos pobres, no nosso tempo, indicou v.g.: os seres humanos que não nascem, as crianças abandonadas nas ruas, os que sofrem com a precariedade existencial e laboral, os que vivem nas prisões, as vítimas de desastres naturais, as pessoas perseguidas por questões religiosas e que vivem nas periferias.
No final desta interessante conferência, no Centro Cultural Franciscano, D. José Traquina, Bispo de Santarém, referiu-se a uma crise espiritual e deu exemplos eclesiais relevantes, afirmando que a maior crise na actualidade, especialmente na Europa, não é a crise económica, é a crise de espiritualidade. A dificuldade de considerar os pobres existe a par de uma secura espiritual. [...] É necessário reconhecer que Francisco de Assis, João Bosco, Vicente de Paulo, Frederico Ozanam, Teresa de Calcutá, Padre Américo, entre outros, tinham consigo aquele fogo do Alto que Jesus veio trazer à terra, e por isso os seus corações e as suas vidas são para nós referências do Evangelho vivo, de uma Igreja com alma, disponível, atenta e com prioridades definidas.
Depois daqueles dias, em que as manchetes destacavam os tais meninos feridos, cuja situação parece ter acordado (sem hipocrisias?) muitos para a defesa e cuidados da vida humana, desde a concepção ao ocaso, eis que de surpresa nos entrou pela porta o Irmão Augusto, da Ordem Hospitaleira, no Brasil; e disse ao que vinha: um sonho seu, a exemplo de S. João de Deus - realizar em Portugal, em locais urbanos, sítios de apoio social, a que chama Pontos de Hospitalidade, para serviço aos pobres e doentes, de forma menos institucional, que sirvam com voluntários e sem burocracias. Que não faltem raízes e asas para estes sinais evangélicos, de proximidade aos débeis.
Na vida concreta com os pobres, às vezes é mesmo difícil encontrar soluções e perspectivas de promoção e libertação das misérias humanas. Entre nós, no quotidiano, experimentamos as dificuldades do crescimento de vários filhos criados (crescidos em altura), nos trabalhos dobrados, pois a sua autonomia vai sendo adiada para além da maioridade, com o prolongamento da escolaridade obrigatória, demorando assim a entrada no mercado de trabalho e tardando a realização da vida conjugal para a família, tão baralhada com ideologias confusas.
Próximos deste Natal de Jesus e em silêncio, numa cave de um bairro, encontrámos outra vez um pequenino, que veio de longe e ficou aos cuidados de uma avó. Na verdade, chegou-nos um pedido de ajuda e tem-se (nos) dado a mão, discretamente. A sua dificuldade em comer já foi superada, mas falta a trapalhada dos papéis, necessários, para que nesta pátria tenha rosto e nome. Acreditámos, como numa mão cheia de casos, em que esperámos uma dúzia de anos (!) e acabámos por vencer, pela teimosia militante. Pelo bem e pelos pobres, nesta causa preferencial, esta marca de cristãos será impedimento ou distintivo de esperança? Há palavras e situações ditas natalícias que nos enfastiam... Tendo Deus feito no mundo a Sua tenda, o presépio de hoje é a vida, em especial a mais pobre, como a do Menino Jesus e da Cruz.
Padre Manuel Mendes