PÃO DE VIDA

Os Cartuxos partiram

Stat crux dum volvitur orbis.


É muito significativo que este lema cartusiano tenha tocado de tal maneira Padre Américo ao ponto de ter deixado uma inscrição similar [Crux stat dum mundus volvitur] em cruzeiros da Obra da Rua. Pela grande admiração que nutrimos por esta ordem contemplativa, de forma elogiosa e saudosa, é nosso propósito deixar uma pequenina memória na partida dos últimos monges cartuxos, de Évora para Barcelona.

Antes de umas simples palavras sobre o silêncio forçado destes monges da solidão, vem a talhe de foice rememorar uma referência curiosa de Américo Monteiro de Aguiar a um belo livro atinente a esta memória, de um valoroso escritor português [esquecido...], cujo itinerário de conversão vale bem a pena conhecer e se bateu pela justiça social. De relance, enquanto ferroviário, foi preso em 15 de Outubro de 1920, conforme disse: A minha acção jornalística na Bandeira Vermelha atirou-me para o Limoeiro, e ali me conservou a justiça do regímen na pior das enxovias... Mas tive durante esse período um grande prazer: conheci um santo, verdadeira reencarnação do Poverello de Assis que a Lisboa do século XX quasi ignora! O Padre Cruz... é uma das figuras da minha Catedral. Entre outros romances marcantes, pelo tema em epígrafe, refere O Deserto, de Manuel Ribeiro [13-XII-1878; 27-XI-1941], vindo a lume em 1922, que narra a sua estadia na Cartuxa de Miraflores [Burgos], em Agosto de 1921, confessando ao monge que o acolheu: É menos a arte que me traz aqui do que o desejo de solidão e de paz. Tenho a alma tão doente! O tempo forte que aí passou, nesse convento dos monges brancos, foram uma experiência de fé que jamais esquecerá, pois guardou até à morte a chave da cela em que esteve oito dias. Este activista político e místico, foi romancista e poeta, precursor do neo-realismo, tendo merecido (e bem), entre outros, um estudo muito detalhado por Gabriel Rui Silva, numa tese de doutoramento [2009], sob o título: Manuel Ribeiro e o Romance da Fé.

Se o valor da palavra se mede pelo seu efeito, a leitura de O Deserto conduziu à Cartuxa dois portugueses, como Manuel Ribeiro confirmou na Emissora Nacional, em 1940: tive conhecimento de várias vocações religiosas que o meu livro decidiu: Recordo-me, por exemplo, dum padre português missionário no Oriente, e dum jovem natural de Lisboa, que professaram na Cartuxa de Miraflores. Refere-se a Sérgio Guedes de Sousa [Frei Miguel (1897-1985], com obra pictórica, que ingressou aos 27 anos na Cartuxa de Miraflores, transitou para a de Jerez de la Frontera e depois para a de Évora, onde faleceu.

Neste sentido, também, numa carta dactilografada [tendo na margem esquerda da primeira página, à mão: silêncio - confidencial!], enviada ao seu amigo Simão Correia Neves e datada de 17 de Outubro de 1923, depois da derradeira martelada, A. M. d'Aguiar deu notícia da sua decisão de ir para um convento de franciscanos em Espanha, para seguir a vida de sacrifício, de dor, de penitência. Do seu punho, remata a missiva com um P.S. [post scriptum], que é de reter nesta ocasião: Compre O Deserto de Manuel Ribeiro e compre A Catedral do mesmo. Note, quando li O Deserto já estava a preparar as minhas cousas para seguir para o Convento [de Vilariño de la Ramallosa], por isso não julgue que o meu passo são influências do livro. Não. Certo é que em missiva para o mesmo Simão Neves, de 4 de Abril de 1924, Américo de Aguiar acabou por concluir [como Manuel Ribeiro]: Doente da alma, devia procurar remédio de feição moral e o melhor de todos pareceu-me ser juntar-me a uma sociedade sã.

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Ao correr da pena e participando da pena supra, evocamos então a despedida emotiva dos monges cartuxos, da planície heróica do Alentejo. O seu sino, especialmente à meia-noite, durante 59 anos chamou os monges para a oração. Pelo facto de não ser possível continuar a manter em Évora a presença dos Cartuxos, segundo a decisão do Capítulo Geral da Ordem Cartusiana, fundada por S. Bruno [1030-1101], ocorreu assim no dia 8 de Outubro, de Santo Artoldo, uma Eucaristia de despedida dos quatro monges cartuxos, na igreja do Mosteiro de Santa Maria Scala Coeli [Escada do Céu], presidida por D. Francisco José Senra Coelho. O Arcebispo de Évora, citando Santo Agostinho, disse que: a tristeza de os ver partir nunca nos faça esquecer a alegria de os ter tido. Na homilia, recordou a fundação da Cartuxa em Évora, entre 1587 e 1598, cujo edifício foi mandado construir pelo Arcebispo de Évora, D. Teotónio, da Casa de Bragança; porém, em 1834, com a expulsão das Ordens Religiosas, este recolhimento foi quebrado e devassado, até que, em 1869, José Maria Eugénio de Almeida adquiriu as ruínas do mosteiro; e, em 1960, Vasco Maria Eugénio de Almeida, Conde de Vil'alva, decidiu restaurar o mosteiro, pelo que a vida eremítica-cenobítica, de contemplação e trabalho, foi reiniciada com sete monges, tendo o consentimento do Arcebispo de Évora, D. Manuel Trindade Salgueiro. Nessa Eucaristia de despedida, ao cair da tarde, o actual Arcebispo ainda elogiou o silêncio da Cartuxa: Que a Cartuxa de Évora seja sempre uma escada para o nosso encontro com Deus, pelas mãos de Maria, a escada para o céu. Que hoje a esperança permaneça no nosso olhar que vê partir, mas que no compromisso guarda nos nossos corações o grande testemunho de vida, a grande pregação do silêncio que os nossos queridos cartuxos nos souberam deixar. No final da celebração, o Padre Antão Lopez, Prior da Cartuxa de Évora, agradeceu a presença e o carinho de todos, sublinhando que, para um cristão, a despedida é um até logo, pois temos a esperança de nos encontrarmos todos um dia diante de Deus. Seguiu-se um forte e prolongado aplauso!

No caminho cartusiano, o monge cartuxo procura a Deus na solidão; e o fim principal é a contemplação, falando a Deus dos homens. Os monges cartuxos de Évora foram mesmo muito estimados. Porém, com o envelhecimento da comunidade e a falta de vocações, a clausura fechou e acabou por ser aberta a todos, depois de uma experiência muito bonita! Ao virar-se uma página gloriosa da história da Igreja em Portugal, diremos ainda com o dito Prior: O importante não é ser cartuxo... o que importa é cada um ser melhor! Apesar de tudo, Évora continuará a ter um pulmão ecológico de espiritualidade, com a vinda de monjas contemplativas.

Ao olharmos para um rebuscado ninho de andorinha, tão recatado e bem feito, que aguarda pela próxima Primavera, no silêncio, acenamos também aos velhinhos monges cartuxos, em sinal de gratidão e pedindo a sua forte oração! Bem-hajam!

Padre Manuel Mendes