PÃO DE VIDA
Um dia feliz!
No extraordinário filão biográfico do Servo de Deus Padre Américo, o marco da sua ordenação presbiteral, em que foi ungido sacerdote de Jesus Cristo, é fundamental. Na sequência deste acontecimento incontornável, ainda há outro testemunho escrito, rubricado pelo seminarista M. [Manuel] P. [Peixoto], sobre a sua primeira Missa Nova, em 29 de Julho de 1929, intitulado Só um dia feliz?... Foi publicado em Lume Novo - Revista dos alunos de Teologia e Filosofia - Seminário de Coimbra, N.º 11, Novembro de 1929. A sua colecção completa [?] seria importante reunir no Arquivo do Seminário Maior de Coimbra e, se possível, digitalizada. Por isso, faz todo o sentido ser transcrito na íntegra, nestas colunas eclesiais, como saiu num volume organizado [em 2015] pelo erudito Henrique Manuel Pereira. Foi dado a conhecer parcialmente neste jornal [n. 272, 31-VII-1954], por ocasião das Bodas de Prata presbiterais de Padre Américo, que se encontrava no Gerês, em eloquente e festivo silêncio!...
Como gratíssima memória, então, deliciemo-nos com esta fiel e comovida reportagem, deixada em manuscrito nas valiosas páginas do Lume Novo. Ora, eis: Santo Agostinho, reflectindo sobre o valor e a dignidade do sacerdote, teve este pensamento profundo: - Sacerdos, quis es tu? E imediatamente responde - nihil et omnia.
Esta frase, que à primeira inspecção se nos pode afigurar um contra-senso, um paradoxo, não o é na verdade. Eu tive ocasião, feliz ocasião!, de a ver mais uma vez realizada nas minhas últimas férias. Foi numa manhã fresca de Julho [de 1929]. Numa capelinha muito limpa, muito bem-disposta, muito linda numa palavra, ia ter lugar nesse dia um duplo acto: - o novel sacerdote ia estrear a capela, e a capela ia estrear o sacerdote.
É sempre muito tocante, muito comovedor, a celebração duma missa nova. Um rapaz que nós ontem considerávamos um nosso igual, com quem brincávamos despreocupadamente, e vermo-lo hoje tão distante de nós, envolto nas suas vestes sacerdotais, distribuir-nos o próprio Deus que ele mesmo fez descer do Céu, dar-nos a beijar as suas mãos sagradas, são coisas que não podem deixar de comover as fibras mais insensíveis da nossa alma.
Logo de manhã, a pequena capela encheu-se de lés-a-lés, não restando um único lugar vazio. Ia começar o acto tremendo do sacrifício.
O sacerdote, hirto nas suas vestes sagradas, grave e recolhido, dirige-se num passo solene para o altar, enquanto o órgão manuseado por hábeis mãos fazia ouvir os seus acordes solenes e festivos.
In nomine Patris, et Filii et Spiritus Sancti, e todos como que electrizados pela voz comovida do sacerdote levam a mão à testa e começam da mesma forma o santo sacrifício.
Desde o intróito à comunhão a missa continuou naquele tom cheio de fé e cheio de enternecimento que para mim nesse momento já não causou estranheza.
Aproximou-se o momento solene, indescritível da comunhão; o som do órgão era mais melodioso, mais piano e assim se ouvia distintamente a voz trémula do neo-celebrante.
Comoveu-me sempre o tom de sinceridade, de convicção, que aquele nosso ex-companheiro sabia imprimir aos seus discursos, aos seus conselhos. Diante dessas palavras senti-me sempre pequenito e bastante edificado. Mas nesse dia, certamente o mais feliz da sua vida, no momento da comunhão as suas palavras de sacerdote fizeram em mim uma tal impressão que ainda nenhumas outras tinham feito. Domine, non sum dignus. Ele, segurando na sua mão trémula uma hostiazinha que encerrava o Criador, olhando para a sua dignidade e indignidade - porque todos somos -, comoveu-se e os seus olhos disseram-nos o que a sua alma sentia. Domine, non sum dignus. Estas palavras, pronunciadas num tom de grande sinceridade e profunda comoção, fizeram uma grande impressão na assistência. Houve muitos olhos que se humedeceram. Eu por mim, confesso, também chorei. O centurião do Evangelho não as teria pronunciado doutra forma.
Começa a distribuição da Santa Eucaristia, e o novo despenseiro do Senhor, com um regozijo imenso que bem lhe vimos impresso no rosto a todos nos saciou com as melhores dádivas do seu Amo. Desde esse momento soleníssimo até à bênção, que era a primeira dada pelas suas mãos sagradas, do coração de todos sem dúvida, subiu ao Céu uma prece fervorosa agradecendo a Deus o companheiro que nos havia dado e pedindo-lhe derramasse sobre ele graças abundantes para poder cumprir os pesados deveres do novo estado. Deo gratias, respondem os acólitos.
E a mesma frase com certeza foi balbuciada pela assembleia: graças por nos ter concedido assistir a acto tão edificante, graças por mais um sacerdote, graças por nos haver saciado com o seu Corpo preciosíssimo.
Por fim, a rematar toda a cerimónia houve o beija-mão, acto sempre tocante na sua simplicidade.
Foi reflectindo nesta cerimónia litúrgica que me surgiu no espírito esta interrogação: qual a razão deste acto? Porque nos ajoelharmos aos pés do novo sacerdote para lhe beijarmos as mãos?
E então quem me esclareceu foi a frase do profundo pensador acima citado: nihil et omnia. Sim, o sacerdote, por suas forças, não é nada, nada vale. Apenas é capaz do pecado, da miséria. Isto mesmo tinha visto proclamar solenemente ao sacerdote, na véspera, no dia da ordenação estendido aos pés do Bispo: peccatores ut nobis parcas, te rogamos audi nos.
Mas então, com as suas vestes sagradas, com as suas mãos ungidas, com a graça de Deus, o sacerdote era tudo. Sim, ele era tudo com a graça de Deus. Omnia possum in eo qui me confortat. E não foi sem um profundo respeito que osculei aquelas mãos há pouco ungidas.
Chegado ao fim destas linhas, não consegui, talvez, prender por um pouco a atenção dos que me leem. Contudo a minha alma vibrou intensamente no dia da primeira missa do novo mui Rev.º P. e Américo.
Era minha intenção ao principiar este artigo, dar uma pequena ideia do que foi a missa nova do nosso Américo, como ontem lhe chamávamos. Mas não o consegui, bem o sei; contudo voltarei a dizer que foi um acto tocantíssimo, muito edificante.
Ah! se todos os sacerdotes dissessem a sua milésima missa como este celebrou a sua primeira, não haveria sem dúvida tantos descrentes.
Um dia feliz! Foi-o sem dúvida esse para o " Frei Junípero" a quem o Lume [Novo] deve as suas melhores páginas. Feliz, felicíssimo! Eu vi toda a sua felicidade expressa num abraço, muito fraternal, muito do coração que o Américo deu a um antigo criado desta casa, uma boa alma que costuma muitas vezes visitar-nos.
Naquele momento foi o seu irmão mais querido.
Nov. 1929
M. P.
_____________________________________________
Frei Junípero era o conhecido pseudónimo do seminarista Américo Monteiro de Aguiar, na revista Lume Novo. Esse frade franciscano foi um dos primeiros companheiros de S. Francisco de Assis, a que se juntou em 1210 e sobre o qual terá dito: Será bom Frade Menor aquele que, como frei Junípero, se vencer a si próprio e ao mundo. Foi um homem de profunda humildade, de grande fervor de alma e caridade. Faleceu em 1258 e foi sepultado na basílica de Santa Maria in Aracoeli, em Roma.
Sobre Manuel Peixoto, do seu processo presbiteral, no Arquivo da Cúria diocesana de Coimbra, indicamos breves dados biográficos: Nasceu em 5 de Novembro de 1908, em Anceriz, concelho de Arganil, filho de Joaquim Peixoto e de Maria da Assunção Fernandes. Em 5 de Outubro de 1922, entrou no Seminário de Coimbra e no qual cursou Teologia. Foi ordenado Presbítero em 31 de Julho de 1932, na Capela de Nossa Senhora da Anunciação, do Seminário de Coimbra, pelo Bispo de Coimbra D. Manuel Luís Coelho da Silva. Em 18 de Agosto de 1932, foi nomeado Coadjutor de Louriçal; e, em 17 de Julho de 1933, Coadjutor da Lousã, onde foi Pároco e Arcipreste. Também paroquiou Rio de Vide e faleceu em 1994.
Padre Manuel Mendes