PÃO DE VIDA

Não ter medo se ser santo

Continuação do número anterior

Vocação à santidade

O anjo Gabriel, enviado por Deus, disse a Maria: Não tenhas medo... [Lc 1, 30]. E o Senhor Jesus pregou a todos e a cada um dos Seus discípulos: Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito [Mt 5, 48].

Segundo o II Concílio do Vaticano, na sua Constituição Dogmática Lumen Gentium [1965] há uma vocação universal à santidade: todos na Igreja, quer pertençam à hierarquia quer façam parte da grei, são chamados à santidade segundo a palavra do Apóstolo [Paulo]: Esta é na verdade a vontade de Deus: a vossa santificação (1 Ts 4; Ef 1, 4) [n. 39]. É a vocação dos seguidores de Cristo, que Deus chamou e justificou no Senhor Jesus, não pelos méritos deles mas por Seu desígnio e Sua graça [n. 40]. Isto acontece pela graça de Deus, por meio da fé em Cristo, que é activa no amor. Na verdade, a santidade é o único fim da vida humana, segundo a Constituição Pastoral Gaudium et Spes [1966]: todos são chamados a um só e mesmo fim, que é o próprio Deus [n. 24].

Neste sentido, o Padre Américo foi muito claro e actual no seu pensamento teológico nesta matéria, como verdadeiro precursor do II Concílio do Vaticano (1962-1965). Deste modo, registamos aqui um belíssimo texto de sua autoria, que é lapidar sobre a vocação universal à santidade, experimentada na sua vida presbiteral de serviço à Igreja e da sua pena exemplar.

Eis: Mais mil escudos a pedir que celebre eu três Missas pela breve canonização de Isabel Leseur. Um pedido singular. Cumpri. Gostava de ver mais Isabéis nos lares. Ele há muitas, graças a Deus. Há muitas nos lares portugueses, mas o Bem nunca é de mais. A canonização é mais para glória da Igreja militante do que propriamente para o indivíduo canonizado. Quantos santos sem canonização! Justamente hoje, à estação da Missa, preguei o Evangelho do dia aos meus rapazes e disse que não tivessem medo da palavra santo. Ser santo. E por aqui adiante, fui-lhes dizendo que em toda a parte, a todo o tempo, qualquer que seja a condição de vida, podemos desejar e abraçar aquele ideal: a cavar as terras, a bater ferro, a picar pedra, a fazer botas, a cortar pano, a advogar causas, a curar enfermos, a dizer Missa. Os rapazes escutavam pasmados.

Sim, prosseguia eu: Basta-te luz e força. A luz é tudo. Sem essa luz, nada. Eu sou a Luz. Nunca nenhum mortal se atreveu a dizer de si uma coisa tão simples! Essa luz, rapazes. Depois, força. Força para fazer o Bem e força para evitar o Mal. Dois caminhos, duas forças. Finalmente, para não demorar os ouvintes, então, nem agora, os leitores, esclareci: o santo é o homem que vive na sua vida a Vida de Deus. Vive-a hora a hora a cair e a levantar-se, a prometer e a faltar, que isso é tudo quanto ele pode fazer. O resto vem de Deus. É bom que todos tomem nota e façam muito caso desta doutrina, por causa da pimponice. Santidade pimpona. Santos pimpões. Cautela! Era duma vez um dia de muita chuva. Duas senhoras encontravam-se abrigadas à porta de um templo, aonde tinham ido orar. Nessa ocasião passa por elas uma peixeira, canastra à cabeça e filho ao colo, toda molhada, a rogar pragas. As senhoras ouvem, escandalizadas: olha se nós fôssemos pecadoras como esta mulher! E foram, dali para suas casas, muito enxutinhas, tomar o seu primeiro almoço com tudo quanto lhe pertence, regaladas. As santas! E a peixeira, de canastra à cabeça e filho ao colo, sem almoço, sem casa, sem nada. A pecadora! Quem tiver ouvidos de ouvir que oiça. [O Gaiato, n. 86, 14 Junho 1947, p. 2].

No início do excerto supra, Padre Américo refere Isabel Leseur [1866-1914], mística francesa e Serva de Deus, autora do célebre pensamento: Uma alma que se eleva, eleva o mundo inteiro. É conhecida pelo seu diário espiritual e na conversão de seu marido, Filipe Leseur [1861-1950] - médico, anticlerical, depois padre dominicano. São itinerários de vida que valem bem a pena ser conhecidos, também neste nosso tempo [e de quem falaremos...].

A grande proximidade [do texto transcrito] à linha de pensamento conciliar e do Papa Francisco é bem evidente. De facto, o Pastor da Igreja universal, na Exortação Apostólica Gaudete et Exultate [Alegrai-vos e Exultai], de 19 de Março de 2018, sobre o chamamento à santidade no mundo actual, salientou os santos ao pé da porta ou da classe média da santidade: Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. Nesta constância de continuar a caminhar dia após dia, vejo a santidade da Igreja militante [n.7]. Todos somos testemunhas desta santidade próxima em familiares e amigos.

O santo é o homem que vive na sua vida a Vida de Deus!

Padre Manuel Mendes