PÃO DE VIDA

O rapaz das tangerinas

Há outra coisa muito importante, muitíssimo importante, à qual desde agora deves atender. Quero referir-me à consciência.

Pai Américo

Será que há momentos em que o mundo gira ao contrário? Às vezes, parece; e, noutras ocasiões, andará mesmo, segundo nos é dado ver e experimentar... Há momentos de serviço na Igreja, neste caso aos Pobres, que é melhor (ou se deve) viver em silêncio (como os felizes monges da Cartuxa) certos acontecimentos, e desses encontros ou desencontros nem ficar uma letra, mas esta lição eterna: Crux stat dum mundus volvitur — A Cruz permanece enquanto o mundo rodopia. Daí que temos enveredado mais por notas históricas, com lições para a actualidade e para que a tinta não acabe por secar no tinteiro. São consequências das exigências legais de situações judiciais e ainda por protecção de dados pessoais. Porém, disse Jesus: pobres [com nomes e rostos] sempre os tereis convosco. Dos segredos que vêm à baila nas parangonas dos meios de comunicação social, valha-nos felizmente e para sempre a tábua de salvação que é a Confissão sacramental! Este intróito explicativo poderá justificar ao de leve tantos silêncios sobre a missão a que nos vamos entregando, carregada de sentidas histórias de vidas, com luzes e sombras. Se parece à primeira vista incompreensível este propósito, permitam-nos que nos reservemos em matérias tão delicadas e imbrincadas.

No entanto, desta vez vai assim para variar uma historieta sobre o rapaz das tangerinas, em que qualquer semelhança com factos reais é pura coincidência. E até poderá servir também para recordarmos Pedro Homem de Mello [6-IX-1904; 5-III-1984], grande poeta do povo - tão antigo como a própria língua portuguesa, com o seu rapaz da camisola verde e povo que lavas no rio...

Há alguns anitos, como outros muitos patrícios, ainda pequenote e com o seu simplório pai, chegaram a este extremo ocidental do velho mundo, à procura de dias melhores. Deixaram pobrezas de vidas, também por contínuos conflitos desde a guerra colonial. Abrindo bem os olhos e na palma da mão, não é possível ignorar que o nosso tempo tem sido marcado por vagas assustadoras de refugiados e também vão chegando umbilicalmente emigrantes da lusofonia. Depois, sem ambiente familiar estável, pois a sua mãe ficou por lá, entretanto foi deixado ao cuidado de outrem, por outra deslocação do progenitor para o norte da Europa, que entretanto voltou e para trabalhos temporários. Depois, foram saltando de bairro em bairro, ditos complicados, sem abrigo próprio, passando ao lado de quem só cuida de papéis. É assim que vem o pedido de ajuda, discreto, mas aflito. Chegou sem nada, mas com talher à mesa.

Em cima de uma mesita de um átrio, deixámos, propositadamente e durante tempo suficiente, duas engenhocas de papel, feitas sabiamente pelo Trancolino, para chegarmos às causas de algumas coisas e loisas de tal rapazito. Entre tantos artefactos que foram saindo das suas mãos, ficou-nos uma pistola e um telemóvel. Não havia mesmo nenhum companheiro ou colega que o superasse neste jeito maroto de agarrar em folhas e às escondidas, debaixo da carteira de estudo, ir engendrando objectos que o seduziam, principalmente armamento ligeiro para as cenas de tiroteio, em correrias nos intervalos da boa vida de estudante. Certo é que também se deliciava com a malta a mirar os voos dos seus aviões de papel, nas larguezas do campo grande, onde também defendia as redes.

O garoto não embarcou numa tendência anti-vacinas, deveras intrigante. Na terra dos encantos - a Colina Sagrada, do convertido e esquecido Manuel Ribeiro [13-XII-1878; 27-XI-1941] e em dias gélidos, temos testemunhado o congestionamento e as aflições nas urgências, nos picos das perigosas gripes e pneumonias. Seguramente, o dito rapazito foi-se protegendo muito bem, tal como a restante tropa fandanga - Nhaga e companhia... Este mocito, que diz amiúde tenho fome (mesmo que coma 5 pães...), foi mais longe, pois deu-se ao luxo de embalar tangerinas já descascadas, em certas ocasiões, para assim ter fruta fresca à mão de comer e saborear, enquanto puxava pelos neurónios. Sobre o reguila em questão, dessa transgressão caseira e benéfica, foi das últimas vezes que o encontrámos e vimos radiante, como visitante assíduo e escondido no pomar, empoleirado numa tangerineira, em que a copa denunciava ligeiros movimentos nesse território defensivo contra micróbios agressivos, mais parecendo abanadelas de brisa suave que ele gozava de cima. Com olhar marotão, ia dizendo prà comandita das companhias e avarias: - eu sou o queijo e vós os ratos... Assim sendo, nutria-se à farta e complementava bem a vacinação, em dia, não vá o diabo tecê-las. Fora algum rapaz mais chona, tais merendas livres, a contento só de alguns, foram dando bons resultados aos aventureiros, levando à letra o que lhes foi dito: - Estão proibidos de ficar doentes!... Pena é, pois, que as colheitas para as mesas comuns não fossem superando as das mãos no ar e ficassem muitas cascas no chão...

Eis que, da noite pró dia, com evidentes interrogações e preocupações nossas, foi sujeito a uma mudança brusca de sítio, à vista de outro horizonte, fortemente urbano, levando uma abojada maternal de necessários pertences e o salvo-conduto das fronteiras, que o outro título (de cá) não foi possível renovar... Ficou visivelmente muito pensativo, quando o confrontámos com um cenário imprevisto de transferência radical, para quem era mesmo apto para radicais cenários e cenas - como eles dizem. Foste a meio do ano de escola, porquê? Será que vais continuar a ouvir e falar com Deus? Qual será o teu modo de vida, pois gostavas muito de correr e saltar e andar com a cabeça no ar? Qual será o teu projecto de vida, familiar, quando o ideal seria regressares um dia ao teu próprio ninho, estando reunidas as condições?

Nesta anunciada Primavera, mas sombria pelas notícias de várias desgraças neste mundo contraditório, de medos e injustiças, em que assustam violências, terrorismos, naufrágios, quedas de aviões e catástrofes naturais, já não vês os corvos no vale, não ouves os assobios dos negros melros e não aprecias os botões floridos das fruteiras - de todos e de cada um, certo! Quando vires chegar lá ao longe, no rio grande, as andorinhas esfusiantes e olhares para os seus ninhos nesses telhados e emaranhados tão antigos, da cidade das sete colinas, certamente te lembrarás das janelas rasgadas ao sol nascente, da grande passareira de rolas, dos ninhos escondidos no cantinho das despensas e dos teus voos nestas colinas por via das tangerinas. Da árvore sabe sempre melhor, não é?!

Num dia inesperado, se os teus olhos vivaços pousarem nestas letras, era bom que tivesses levado a sério no teu crescimento lento sentidas recomendações que te fizeram por bem. Assim mesmo: Nunca confundas liberdade com libertinagem, nessa grande (bué...) paragem de onde saíram e regressaram tantas caravelas, em que se encontra muita gente de viagem, também em formigueiros de cruzeiros. Nunca te deixes levar pelas luzes falsas das noites incertas e das trevas. Não bulas em coisas que não te pertencem. E escuta sempre a voz da tua consciência - são alguns recadinhos, ao jeito do Amigo de Nazaré, de que ouviste falar por cá: Não vou, não quero e isso não é meu! Toma lá então, rapaz, muita atenção, pois espreitam por aí muitos perigos, de falsos amigos. Com o Mestre ao nosso lado, vencemos as lutas e as quedas de cada dia-a-dia!

Tal como os outros companheiros e galhofeiros, cada filho teve e tem sempre o seu lugar na mesa, na escola, no berlinde e na bola, mesmo que tenha teimado em birras ou sujeito em momentos de asnear. Mais (e pró gabanço), não percas o teu jeito de cantar! Irás deixando de picar e crescendo sem encurvar, com graça! Também, ficámos a pensar por ti: - As saudades que eu tenho do Astronauta e companhia limitada, para além das minhas saborosas tangerinas, que me faziam ser um grande bombeiro! Não houve mesmo tempo para um adeus geral; porém, no teu telelé, criado em papel, como um papagaio pequenino, antes de ficar a recato, ficou e bem uma última mensagem, que nunca podes apagar: ser gaiato é para sempre!

Entretanto, ao cair de outra tarde cheia e depois do reboliço da vinda das escolas, sobre um assunto tão importante para a vida de cada um e da comunidade (a consciência), a rapaziada da Casa teve oportunidade de escutar e ruminar palavras sábias de Pai Américo: Nós temos muita fruta nos nossos campos e muitas coisas do vosso agrado nas nossas Casas. Se alguém vos aconselhar a tomar para si uma coisa ou outra, não é amigo. É um mau conselheiro. Não tem consciência. Noutro profundo Cantinho dos Rapazes, vem uma preciosidade sobre o tesouro interior de cada pessoa e que devia ficar gravada no coração humano de quem a ler. Eis: A consciência é uma coisa que está dentro de ti, que te pica naquela mesma ocasião em que praticas as acções e te diz se elas são boas ou más. Mas faz mais a consciência: julga-te. Ela não espera por ninguém que o venha fazer. Julga ela mesma, pela força e pelo saber que tens. Tu nunca estás só. De nada vale a gente esconder-se. Para onde quer que vás, onde quer que estejas, lá está o juiz. A consciência é a voz do nosso Bom Deus a chamar por ti, a dizer que te espera, a declarar-Se Pai.

Esta linda e forte página de antologia saiu da pena de um grande profeta da Igreja no nosso tempo, o Servo de Deus Padre Américo, como tantas de mestre e artista da palavra, tão reais e actuais, mas desconhecidas pelas crianças e adolescentes e jovens das escolas de Portugal e das outras pátrias da língua portuguesa. Contudo, entre nós, tem sido posta sobre o candelabro do refeitório desta comunidade. Certo dia de estudo, fomos felizmente encontrá-la consignada, no seu miolo, em documento importante da Santa Igreja - Gaudium et Spes (vinte anos depois, em 1965 - sim!...): A consciência é o núcleo mais secreto do homem, e o santuário onde ele está a sós com Deus, cuja voz ressoa no seu íntimo.

Padre Manuel Mendes