PÃO DE VIDA
Pelos que têm fome e sede de justiça
Ora se as coisas terrenas andassem afinadas, a Imprensa devia ser uma força orientadora ao serviço da Verdade.
Padre Américo [22-I-1949]
A três dias das bodas de diamante deste pequenino tesouro eclesial que é o jornal O Gaiato, no seu modo simples e irreverente, em que o primeiro número tem impressa a data de 5 de Março de 1944, aparece agora este número festivo do famoso, assim apelidado, depois de milhares de páginas de canseiras e sementeiras. Tem sido um quinzenário lido avidamente desde as primeiras letras, por crentes e descrentes e pessoas de todas as condições sociais, em plena II Guerra Mundial, tempo muito difícil de tantas privações, principalmente fome, enfermidades várias e incuráveis, abrigos indignos e outras misérias, também morais. Foi durante décadas apregoado pelos Rapazes da Obra da Rua, com saca a tiracolo pelas ruas. Acarinhado por milhares de assinantes, uma parte deles já no Reino dos Céus, também vai ficando nas mãos de muitos coleccionadores. Desde os primórdios, do Porto e depois na Tipografia da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, tem a marca indelével especialmente do seu fundador Padre-Pai Américo e dos primeiros e entusiastas cronistas, bem como de todos os seus colaboradores ao longo da sua vida já longa e muito frutuosa. Conquistou lugar justamente merecido na história da imprensa periódica em Portugal, nomeadamente de inspiração cristã. Neste nosso tempo, demasiado veloz, este jornalito dos pobres e por eles, de roupagem humilde, mas tão ansiosamente esperado por tantos amigos, com o avanço tecnológico felizmente não perdeu as letras impressas de Gutenberg, e até foi possível ter mais cores e chegar às mãos dos seus fiéis seguidores, gratuito e via digital, sem subsídios e comendas. É certo que urge motivar novos leitores. Neste desafio permanente de defesa e promoção dos membros enfermos da sociedade e que têm fome e sede de justiça, tem contado sempre com a amizade indefectível dos seus beneméritos leitores e basta-lhe a Providência divina. Só Deus basta!
Dado que há um momento para tudo e um tempo para todo o propósito debaixo do céu, não iremos agora tratar situações mais próximas, mas no encalço de mais distantes, pois há tempo de calar e tempo de falar... Assim sendo, de forma singela, ao fazermos esta assinalável comemoração jornalística, realçamos os primórdios dessa missão e dedicação grande de cuidar dos pobres, que foi confiada ao Padre Américo pelo Bispo de Coimbra, D. Manuel Luís Coelho da Silva, tornada exclusiva até ao seu passamento. Nisto nos adentrámos por burocracias relativas a habitações para pobres na Quinta da Misericórdia. Este sítio pertinho de campo santo, no alto da Conchada, em Coimbra, onde tal Prelado amigo tem campa rasa [26-III-1859, 1-III-1936], reveste-se de um grande simbolismo na acção pastoral do visitador e procurador dos pobres, nas ruas e nos tugúrios, em contacto muito próximo e sistemático com a miséria urbana, levando ajudas básicas e numa acção de compaixão espiritual, pela dignidade humana e cristã.
Nesses tempos muito difíceis e desse lugar de misérias, um testemunho eloquente nos surgiu em investigação persistente, quando encontrámos no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, uma carta dactilografada dirigida ao Ex.mo Snr. Dr. A. de Oliveira Salazar [do seu Arquivo], do Seminário de Coimbra, em Junho de 1933, assinada por Padre Américo de Aguiar! Parece-nos ocasião para publicar e reflectir no essencial dessa missiva inédita: Por esta mala respondo ao Ex.mo Sr. Luiz Machado Pinto, enviando os esclarecimentos que posso dar da Sopa dos Pobres, mas receio nada poder conseguir, porquanto não tenho Estatutos nem escrituração. Distribuo na medida que recebo, pelas portas dos novos pobres, famílias de muita fome com vergonha de pedir; e para os necessitados que facilmente pedem, as Religiosas Hospitaleiras, na rua da Matemática, distribuem diariamente setenta tigelas de sopa com um pedaço de pão quatro vezes por semana, porque não tenho meios para o fornecer todos os dias. Eis tudo. O "Correio de Coimbra" dá o movimento semanal d´esta Sopa dos Pobres. E já que a bondade de V. Ex.cia me encoraja, ouso dizer, humildemente, que tenho gemido aos pés dos Grandes d'esta linda terra: - Gov. [Governador] Civil [Dr. Joaquim de Moura Relvas, 1932-1933], [Dr. Fernando Baeta] Bissaya [Barreto Rosa], Delg.º [Delegado] de Saúde - a miséria da Quinta da Misericórdia à Conchada, para a qual não há tinta nem palavras que suficientemente a possam descrever. Oitenta famílias em tocas imundas; para cima de cem criancinhas d'olhos sumidos; vício, fome, muita imoralidade - campo imenso de cultura microbiana. Tudo isto tenho vivido intensamente nas raras visitas que ali faço, onde não posso falar de Deus prq. [porque] há muito desespero. Dizem-me aqueles Senhores que sim; que se vão tomar medidas urgentes - cem casas para gente pobre. Quando?
Evidentemente, sem espaço para comentários, ficam registadas como memória aquelas letras dolorosas supra (com 86 anos). Porém, ainda a tempo de parabentear O Gaiato por este seu feliz 75.º aniversário, com uma multidão de histórias de vidas e fazendo o bem, pelo Santíssimo Nome de Jesus, desde aquela boa hora em que Padre Américo (com 56 anos) corajosamente o lançou por amor aos pobres. Ex corde, bem-hajam todos os seus leitores e amigos. Ad multos annos!
Padre Manuel Mendes