PÃO DE VIDA

Um Natal mais pobre

Em ocasiões de neblina incerta e tristeza, conhecer estórias da nossa história eclesial e pátria, tem-nos ajudado a compreender ou superar contratempos nesta via crucis/lucis discreta, de serviço eclesial e promoção social. Mesmo em tempo digital, não faz mal dar atenção àqueles escribas que no papel deixaram memórias vivas dos pobres nos seus tempos difíceis, de misérias e escassez de pão, saúde e instrução.

De distinto e cristão magistrado de Coimbra — o Dr. José Marques da Cruz Almeida - no reino dos justos, chegou-nos às nossas mãos um livro reconhecido do insigne Raúl Brandão - Os Pobres, que termina assim: No infinito é da sua [dos pobres] dor que se alimenta Deus. Era Janeiro de 1900... Continuámos a pousar os nossos olhos nessas páginas estimadas, em especial, no duro Natal dos pobres e fica mais este sinal de esperança: Porque é que criaturas misérrimas encontram ainda na sua gélida nudez horas para recordar e amar? Pobres repartem o seu pão; espezinhados dão-nos das suas lágrimas. Depois, olhámos bem para Os Famintos, de João Grave, rematado em Março de 1903 e que começa deste modo: Foi num sábado ao entardecer que Manuel, adoecendo de repente, abandonou o trabalho, com as faces cavadas numa funda ruga de amargura e os olhos acesos dum intenso brilho de febre. A miséria social desse tempo, no início do século XX, continuou com a instabilidade política da I República, entristecida pela perseguição religiosa à Igreja Católica. E, depois, com a I Guerra Mundial, Portugal também foi sofrendo consequências nefastas. Ainda conhecemos um pobre soldado sobrevivente desse desastre e honramos aqui esses corajosos militares portugueses do Corpo Expedicionário (CEP), de há cem anos, que foram carne para canhão (Batalha de La Lys...), com os seus capelães militares, como o santo Padre Luís Lopes de Melo.

Dez anos depois, em Coimbra, entre amigos dos Pobres (Criaditas dos Pobres, vicentinos...), o Padre Américo foi encontrando muitos amigos em tocas e matando a fome aos pobres (ao relento, em abrigos escuros, na Sopa dos Pobres), levando roupas aos andrajosos e mais ajudas básicas. Entretanto, veio a desgraça da II Guerra Mundial, com mais fome, falta de abrigos decentes e de cuidados de saúde, a orfandade, os ditos filhos ilegítimos, a miséria urbana, trabalhos duros e míseros salários... Como bom samaritano — Recoveiro dos pobres - não passou ao lado deles, pois continuou a visitar e a ajudar pobres, abandonados, escorraçados e doentes. Foi acolhendo e proporcionando Colónias de férias aos garotos da rua e depois Casa aos gaiatos. Afagou reclusos, como disse e bem, em 1939, de um seu amigo das prisões, onde cumpriu larga pena por crimes sociais: Abraçamo-nos debaixo do céu azul, à beira do turbilhão que passa. A batina negra do padre, que para este foi e para tantos é ainda o maior mal do mundo, mudara de cor num instante; e agora era para ele e tem sido para muitos o maior Bem! Quando se aproximava um Natal dos Lázaros, escreveu numa nota, no Correio de Coimbra (entre centenas de belas páginas de sangue vivo, recolhidas como Pão dos Pobres), assim: Eu hei-de tocar com as minhas as mãos de cada doente, dar-lhes recados de teu mando, desejar-lhes as Boas Festas em teu nome, chorar contigo, ao pé de cada uma das camas, a ausência e a distância das famílias. E, no fim de tudo, hei-de botar o pião mai-los miúdos da tinha, e comer com eles as sobras da consoada!

Às portas deste Natal, poderá servir esta justa nota histórica, das periferias dos compêndios escolares, para nos centrarmos na sua verdadeira razão de ser — Jesus pobre e no pobre, com as contingências actuais, tão dolorosas. Se nos é permitido dizê-lo e fôssemos a contar as horas e peripécias que também temos passado neste decénio em serviços oficiais, como Tribunais, por mor daqueles que encontrámos e nos têm sido confiados, faríamos um calhamaço que, modestamente, muito daria para pensar e, no rol a desfiar, algumas situações fariam espantar qualquer incauto... Confessamos que são sempre momentos de angústia quando se aproximam e acontecem os debates e os embates, lidando com tantas pessoas que clamam por justiça, pelas consumições dos poderes e em circunstâncias emergentes e diferentes — dos tugúrios às repartições e salas de audiências. Na maioria das situações, tem imperado mais o bom senso. A perseverança e a confiança no Omnipotente não se podem perder, nas salas de espera e nos passos das escadarias de cada domus iustitiae. Sem quebrar a devida reserva, própria destes processos tão melindrosos, desde o acolhimento e continuação das medidas até ao regresso ao meio natural ou autonomização, deixámos como simples testemunho nesta coluna uma significativa afirmação judicial, escutada com muita atenção sobre um rapazito, cujo pai é enfermo: — Pediram ajuda a uma instituição credível... Isto foi dito alto e bom som por um Magistrado da nossa Nação! É desejável, em qualquer sociedade, um Estado de Direito, em que se defende e promove os mais fracos; e, em Portugal, desde 1999 que há outro enquadramento legal em matéria de menores — é a Lei de protecção de crianças e jovens em perigo, embora as situações e as decisões justas dependam muito das reais avaliações.

À margem destas preocupações humanas, parece-nos que reina grande confusão sobre o verdadeiro lugar dos animais e outros que tais na Criação. Assim pensamos: os seres humanos têm direitos e deveres; e, entre eles, cuidar bem dos animais. A fala foi dada ao homem, rei dos outros animais — como se lê no Tesouro poético da infância, de Antero de Quental. Na Antígona (séc. V a. C.), vem isto: Muitos prodígios há, porém nenhum maior do que o homem. Tem-se paganizado cada vez mais o Natal cristão, escondendo Jesus às crianças e substituindo o Menino Deus por pais natais e animais... Numa época de rápidas mudanças socioculturais, temos de voltar a Jesus — do Evangelho — que Se fez homem e transforma o mal em bem.

Há longos anos — vai para 79 (!) — que o Padre Américo conseguiu para a Obra da Rua os primeiros Estatutos, no foro civil e na cidade dos doutores. Convém focar e sublinhar o que foi aprovado pelas autoridades competentes — eclesiástica e civil — na sua última versão estatutária (2015): O Estado Português respeitará a natureza, autonomia e identidade da Obra. Então, nesta luta permanente por partilhar o essencial com pobres (que é, acima de tudo, espiritual!), há burocracias (pormenores) que serão obrigatórias para acertarmos na ajuda (em gratuidade e gratuitamente) aos mais frágeis, sem subsídios oficiais...

Neste momento, sobre as irmãs e os irmãos mais débeis da Obra da Rua - doentes do Calvário - separados do seu lar, podemos dizer, como o transmontano Padre João Parente, nestas horas tão crucificantes para eles e quem os ama: Mas, Senhor, é nas pessoas que te fazes sacramento. E, sendo Amor, te magoas, quando as vês em sofrimento. O Natal deste ano, depois do tempo incerto da partida inesperada de Pai Américo (1956), é assim uma quadra mais triste e pobre ... E, ainda, do citado Natal dos pobres, pois dá-nos mais para meditar, respigámos este lamento: As lágrimas que se choram e se não vêem são as melhores: caem sobre a alma. É este o Natal do Menino Jesus e da cruz, em 2018, que entre nós não será, mas podia ser feliz...

Se Deus habita em todos os lugares em que a gente o deixa entrar, como disse um rabino, nós cristãos celebramos o nascimento do Pobre de Nazaré, que entrou na humanidade — fez-Se carne e habitou entre nós — para a todos salvar. No profeta Isaías, está escrito que o Messias foi enviado a anunciar a Boa Nova aos pobres; e reconhecido por aqueles que dependem só de Deus e n'Ele confiam. De um povo humilde e pobre, segundo Sofonias, com o sim de Maria, uma pobre de Nazaré, veio ao mundo Jesus — o Salvador, para todos os que semeiam em lágrimas e, fiéis a Ele, recolham um dia com alegria. Que o Menino Pobre do Natal enriqueça todos os nossos amigos com as suas bênçãos — de saúde e paz!

Padre Manuel Mendes