PÃO DE VIDA
Casa do Gaiato do Porto
O Padre Américo tem de morrer e o nome dele ficar nos alicerces da Casa do Gaiato, escondido:se o grão de trigo ficar à vista não dá pão. Não é modéstia; é amor à Criança abandonada. É política... do Pai Nosso. Torna-se necessário que ele desapareça para que a Obra cresça.
Padre Américo
A bibliografia activa e passiva de Padre Américo e da Obra da Rua é imensa! Para continuarmos a esboçar um singelo retrato da fundação da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, por ocasião dos seus 75 anos de vida, vamos dando prioridade evidentemente às fontes, em especial ao que foi saindo da pena extraordinária de Pai Américo. Ele próprio, numa nota ainda no Correio de Coimbra, em 1943, escreveu assim: Muito se tem falado e escrito, nos nossos dias, acerca da Casa do Gaiato do Porto; porém, aqui é que se encontra a única interpretação fiel da Obra da Rua. Podes beber todas as semanas, que as águas desta fonte não são sujas nem envenenadas.
De entre as belas páginas em que registou os primórdios da Obra da Rua, fazendo assim história viva, no seu jeito de síntese, em 1952, deu à estampa um interessante opúsculo intitulado A Porta Aberta, cuja descrição da Casa do Gaiato do Porto transcrevemos na íntegra, pois resume de forma peculiar um sonho urgente, em prol dos Rapazes pobres, que se foi tornando realidade na freguesia do Salvador de Paço de Sousa. Eis:
No fim do segundo ano, que foi Janeiro de quarenta e dois, os novos habitantes mal cabiam dentro do berço [Casa do Gaiato de Miranda do Corvo]. Tornava-se necessário expandir e eu dirigi-me ao Norte a ver se dava com uma quinta. No Porto, encontrei coisa melhor; era fora do mercado do Anjo um grupo de garotos a merendar do chão cascas de fruta! Parei. Falámos. Tornámo-nos grandes amigos. Eu era o senhor abade. Quiseram naturalmente saber aonde eu morava; e acompanharam-me naquela tarde à estação de S. Bento. Regressei a Coimbra. Em vez de quinta encontrei no Porto, aonde a procurava, uma grande e viva necessidade dela. Tornei. Os garotos eram chusmas e eu admirava-me de que não tivesse aparecido o homem naquela cidade! Entrementes, a Casa do Gaiato de Coimbra crescia. Finalmente, no outono de 1942 passei por Paço de Sousa e vi ali um convento abandonado, com sua quinta murada. Entrei. Medi. Suspirei. Era aquela a minha cruz; a cruz que o Senhor me preparava. Cruz doce como são todas as que Deus dá. Dali mesmo e na casa do pároco da freguesia [Padre Miguel Baptista Lopes], alinhavei duas letras para o então Subsecretário [de Estado] da Assistência Social [Dr. Joaquim Diniz da Fonseca] e a resposta foi a dizer que sim. Tomei conta no [dia 20] mês de Abril de 1943. Por essa altura, Padre Adriano estava já associado a mim. Elaborámos o projecto; uma aldeia para trezentos rapazes com 18 pavilhões adequados. Sem letras, sem dinheiro, sem prestígio, sem nada, nós íamos realizar o incrível. Colocámos o projecto nas mãos do arquitecto Teixeira Lopes e dissemos que queríamos tudo de granito e nada igual. Eu tinha recebido das mãos da Junta [de Província] do Douro Litoral, ocupante deste património, o seguro de 156 contos, por um incêndio que ali houvera em 1939 [21 de Outubro de 1940]. Tinha este dinheiro e não tinha mais nada. Urgia começar. Ouvira falar do Engenheiro Duarte Pacheco, então Ministro das Obras Públicas. Fui por aí abaixo. Nunca nos tínhamos encontrado. Eu disse. Ele escuta. Não levava comigo riscos nem figuras; nem ele precisava delas. Pedi trezentos contos. O Ministro adianta-se cem anos e disse a tudo que sim. Eu balbucio dificuldades de prestação de contas. Ele responde que não e exarou: concedo ao homem e à obra, a qual não pode estar sujeita a peias burocráticas. Isto consta dos arquivos. Isto foi ontem, com um avanço de cem anos. Isto tem rendido cem por um à Nação.
No dia 27 de Maio daquele ano de 43, celebrei Missa, sozinho, no altar da igreja de Paço de Sousa. Ela é uma jóia nacional. À mesma hora e nos lugares previamente marcados, cem homens começavam a trabalhar. Mais nada. Mais ninguém. Gosto do silêncio! Não levou muito tempo que as primeiras casas começassem a sair dos alicerces. Mas eis que se dá um acontecimento nacional. Eu estava em Miranda, quando a Emissora deu notícia, no dia 16 de Novembro [de 1943]. Era uma voz plangente, a dizer que o Ministro das Obras Públicas tinha morrido naquela manhã, de desastre! Trabalhavam em Paço de Sousa uns 150 homens. Eu tinha o Ministro e mais ninguém. Ele morre! Tudo acabou. Deliberei despedir homens, reduzir despesas, confinar-me à Casa da Miranda. Morreu o Engenheiro Duarte Pacheco! Mas Deus é eterno, berrei eu dentro de mim; e com este pensamento me levantei. Se não tão fácil como seria, a Casa do Gaiato do Porto é hoje uma formosa aldeia de magníficas construções.
Sobre este assunto que marcou profundamente o Padre Américo, ainda deu mais pormenores: O despacho de 28 de Abril de 1943, de 300 contos, saiu da pluma do Leão e diz assim: O alto interesse social da Obra e os merecimentos que concorrem no homem que pede, justificam, de sobejo, a ajuda do Estado. Por isso a concedo, dispensando formalidades que embaraçam uma acção inspirada apenas em ideias de bondosa e pura solidariedade humana - Duarte Pacheco.
Não sei quem me há-de suceder; mas sei, sim, que se não houver a recta intenção de dar o sangue por amor destes pequeninos farrapos, ninguém nunca arrancará penadas ministeriais semelhantes a esta, ainda que se pinte da melhor política. Ninguém; nunca!
Para que não subsistam equívocos sobre a autoridade legítima do Orientador da Obra da Rua depois da morte de Padre Américo, em 16 de Julho de 1956, segue-se um breve esclarecimento em rodapé. Nesta matéria dolorosa, tivemos em mãos uma carta (confidencial) do Padre Américo, de 3 de Julho de 1956, enviada de Paço de Sousa e dirigida ao seu Bispo de Coimbra, D. Ernesto Sena de Oliveira, sobre uma suposta vidente, dizendo: ateimamos que isso pertence à Hierarquia. Não temos nada com o caso. [...] "Ou, ou". Isto referente ao Padre Adriano Antunes († 23-XI-1983). Com o Padre Elias, depois, vincularam-se à Pia União dos Apóstolos da Rua, com sede na Casa do Gaiato das Capelas, na ilha de S. Miguel, nos Açores, desligados da Obra da Rua ou Obra do Padre Américo. Assim, treze dias antes do seu passamento, por essa saída, no zelo da ortodoxia da fé cristã, o Padre Américo foi impelido a escrever: Deus supre. Em 18 de Julho de 1956, o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, aceitou a proposta dos Padres da Rua de designar o Padre Carlos Galamba como Director da Obra da Rua.
Padre Manuel Mendes