PÃO DE VIDA

Casa do Gaiato das Ruas do Porto

A Obra é do Porto; de todos e de cada um dos seus habitantes.
Quando me enxergarem nos púlpitos, nos teatros, nos cafés,
nas ruas, nas praias, nos hotéis — é o pedinte que vai levado,
o servo do garoto da rua a estender a mão para ele,
por amor de Deus.

Padre Américo

Se do amável leitor tem havido benevolência para acompanhar as notas históricas precedentes, verificou que, entre tantos amigos, houve um tripeiro de gema que saiu naquelas horas decisivas ao caminho de Padre Américo, no Porto, para o ajudar a agarrar tal sonho urgente e assim ser lançada uma Aldeia do Gaiato, em terras de D. Egas Moniz: António Russell de Sousa. Esta asserção é confirmada por um lote de missivas que nos foi dado ler, na íntegra. A três dias de tomar posse do edifício e cerca do antigo mosteiro beneditino do Salvador de Paço de Sousa, de uma carta de Padre Américo, datada de 17 de Abril de 1943, em Coimbra, recortamos necessariamente algumas linhas:

Meu Bom Amigo: Tomo nota dos seus passos em Lisboa e do seu regresso no Domingo de manhã. Se eu não receber notícia em contrário, sigo na terça para tomar posse no Governo Civil [do Porto] e esperar em Paço de Sousa, no dia seguinte, um funcionário da Junta [de Província do Douro Litoral]; é com esta certeza que eu sigo. Havendo algo em contrário, telegrafe para: Casa do Gaiato — Miranda do Corvo, para onde eu sigo hoje, sábado, e demoro até 3.ª feira de manhã. Da minha conversa com o Ministro das Obras Públicas [Eng.º Duarte Pacheco], havemos de falar com muito interesse. Basta que por agora lhe diga que eu pedira 300 contos e esta quantia vamos receber sumariamente logo que seja solicitado! Somente pode divulgar esta boa notícia ao nosso Governador, por enquanto. Fico a saber que nada posso levar do Arquitecto [Teixeira Lopes], para o mestre d'obras; contudo, não perco as esperanças de começar na 1.ª semana de Maio [de 1943]. [...] Amigo certo P. Américo!

Neste tentame de aproximação a um itinerário histórico da fundação da Casa do Gaiato da Ruas do Porto, em Paço de Sousa, justifica-se entretanto e plenamente a referência a um documento com valor jurídico que felizmente se conservou desde os primórdios e foi recolhido no Memorial Padre Américo — Obra da Rua. Trata-se de um texto dactilografado, original, com 8 páginas, assim intitulado:

Auto de entrega dos bens imobiliários e móveis, títulos de crédito e documentos que pertenciam à Casa Pia de Paço de Sousa, feita pela Junta de Província do Douro Litoral, nos termos da Portaria abaixo descrita.

Aos vinte dias do mês de Abril de mil novecentos quarenta e três. Pelas dezasseis horas, perante mim, Joaquim dos Santos Vizeu, chefe de secretaria da Junta de Província do Douro Litoral, no gabinete da presidência da referida Junta, compareceram o seu presidente, senhor professor doutor António de Almeida Garrett, casado, domiciliado nesta cidade, na rua do Doutor Pedro Dias, e o senhor reverendo Padre Américo de Aguiar, com domicílio na cidade de Coimbra, ambos com o fim de intervirem no acto de posse da Casa Pia de Paço de Sousa, o primeiro entregando-a e o segundo recebendo-a, nos termos da Portaria do Excelentíssimo Senhor Ministro do Interior, com a data de dez do mês corrente e publicada pela Direcção Geral de assistência, na segunda séria do Diário do Governo, número oitenta e sete, de catorze deste mês [...]. Assinam o dito Auto: António de Almeida Garrett, P. Américo d'Aguiar!, Bonifácio Pinto Cardoso [tesoureiro da referida Junta] e Horácio Pinto [aspirante da dita Junta].

Este documento foi transcrito, integralmente, no referido Relatório da Junta de Província do Douro Litoral em 1943. Entretanto, seguem-se aí mais informações, como esta: Reunida a Junta de Província, após a formalidade do acto da entrega, no dia normal da sua sessão, em 22 de Abril último, este corpo administrativo ratificou tudo quanto se tinha feito [...].

Surgem, assim, dados determinantes, nos primeiros tempos, que levaram à construção de uma Casa de raiz, para sede da Obra da Rua, com aspectos notórios, a saber: a entrega oficial do edifício e da cerca do antigo mosteiro; um donativo ministerial, para as obras; e o projecto da Aldeia do Gaiato. Para melhor elucidação desse acontecimento fundante, em que revelámos como que a certidão de nascimento da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, importa esboçar, em pé de página, breves notícias de alguns intervenientes destes primeiros momentos de vida dessa Casa, tecidos nas cidades do Porto e de Lisboa, com quem Padre Américo contactou directamente, ao serviço da Igreja, por uma nova história, para ajuda e promoção dos Pobres, naquele sítio emblemático junto ao terreiro e ribeiro de Gamuz, afluente do Sousa. Eis, então, um esboço de retrato de alguns homens supracitados:

O Dr. António de Almeida Garrett nasceu em 22 de Setembro de 1884, no Porto, e faleceu em 1961. Licenciou-se em Medicina e Cirurgia, pela Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em 1906; e doutorou-se em Pediatria. Foi o 1.º Assistente da Faculdade de Medicina do Porto (1912-1917) e Director da Faculdade de Medicina do Porto. Presidente da Junta de Província do Douro Litoral e deputado na VI Legislatura (1953-1957), com intervenções v.g. sobre protecção à família e casas de habitação económica e para famílias pobres.

O Engenheiro Duarte José Pacheco nasceu a 19 de Abril de 1900 [1899, no assento de nascimento], em S. Clemente — Loulé; e faleceu em 16 de Novembro de 1943. Concluiu o 7.º ano no Liceu de Faro, em 1917. Veio para Lisboa aos 17 anos e formou-se em Engenharia Electrotécnica, em 1923, com 19 valores, no Instituto Superior Técnico. Foi Professor e Director efectivo do IST (10-8-1927), Ministro da Instrução Pública (1928), Ministro das Obras Públicas e Comunicações (1932, 1936 e 1938), e Presidente da Câmara Municipal de Lisboa (1938). É considerado um dos políticos mais marcantes no século XX e o precursor do planeamento urbano, em Portugal. Ao seu nome ficaram ligadas obras emblemáticas, como a construção do IST, o Hospital de Santa Maria, o aeroporto da capital, os portos de Lisboa e Leixões, bairros sociais em Lisboa, o parque florestal de Monsanto, a modernização dos correios e telecomunicações, a expansão da rede viária nacional, etc. Foi um sonhador de grandes coisas e o seu nome faz parte da toponímia de muitas localidades; e também da avenida principal da Casa do Gaiato de Paço de Sousa.

O Arquitecto António Júlio Teixeira Lopes nasceu em 1903, em Mafamude, Vila Nova de Gaia, filho de José Teixeira Lopes; e sobrinho de António Teixeira Lopes (1886-1942). Ingressou na Escola de Belas do Porto em 1919 e concluiu o curso em 1926. Faleceu em 1971.

Antes de darmos mais alguns pequenos passos neste caminho e doutrina a bem da chusma de pequeninos vadios dessa terra — Porto, a propósito de uma carta anónima, lançada na caixa do correio de Miranda do Corvo, em cujo comentário Padre Américo referiu que tais cartas são o cardeal-diabo das várias canonizações que me fazem por esse mundo além, deixamos ainda esta sua confidência: É absolutamente impossível que esta Obra a que me devoto, não prossiga a passos de gigante — ou Deus não existe! Impossível, sim, que as marcas interiores que se não dizem e as exteriores que tu conheces, todas elas dão testemunho do seu valor.

Padre Manuel Mendes