PÃO DE VIDA

Ainda no Mosteiro

Andam os homens tão ocupados com as notícias do mundo

que não querem ouvir as do Céu

e espantam-se da simplicidade e da audácia dos obreiros do Evangelho.

Padre Américo

Continuamos gratamente a tecer uma pequenina memória dos primórdios da Casa do Gaiato das Ruas do Porto, ainda no Mosteiro beneditino do Salvador de Paço de Sousa, retomando o fio da meada, necessariamente cortado por assunto tão fundamental e em debate nacional, no momento — a eutanásia...

Entre as fontes disponíveis, damos conta de notícias inseridas num Relatório oficial: A Junta da Província do Douro Litoral em 1943. Assim, para melhor esclarecimento da fundação da Casa do Gaiato de Paço de Sousa nesse sítio histórico, transcrevemos parte dessa informação, sob o título Casa Pia de Paço de Sousa — A sua passagem para a administração da "Obra da Rua": Corria seus termos, na Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, o processo da reconstrução do edifício da Casa Pia de Paço de Sousa, achando-se as negociações entre a Junta de Província e aquela repartição do Estado no pé em que foram narradas no nosso último relatório, quando se recebeu do sr. rev. Padre Américo de Aguiar, fundador da "Obra da Rua", a seguinte comunicação: «Coimbra, 20 de Fevereiro de 1943 - Ex.mo Sr. Presidente da Junta do Douro Litoral, Porto - "Casa do Gaiato das Ruas do Porto" — A Casa de Repouso do Gaiato Pobre, de Coimbra, vai tomar posse da antiga Casa Pia de Paço de Sousa, para ali fundar uma obra congénere à de Coimbra, a bem da vadiagem infantil das ruas dessa Nobre Cidade. Na próxima 6.ª feira, espero ser recebido por V. Ex.ª, da parte da tarde, e trocar impressões a este respeito. Daí, seguirei para Paço de Sousa, onde me devo encontrar com o arquitecto Teixeira Lopes, que vai estudar o local das construções. O Ex. mo Sr. Dr. Pires de Lima também me recebe naquele dia, sobre o mesmo assunto.» A resposta não se fez esperar, pois logo no dia 22 [de Fevereiro] foi dirigido àquele sacerdote, para o "Lar do Pupilo dos Reformatórios de Coimbra", um ofício nestes termos: «Foi com íntima satisfação que nesta Junta se recebeu a agradável notícia de vir finalmente a dar-se um destino condigno ao extinto Convento de Paço de Sousa, com a projectada adaptação do edifício e seus terrenos anexos a um internato similar ao da "Casa do Gaiato" que sob os melhores auspícios funciona nessa cidade. Satisfazendo o desejo de V. Ex.ª, do melhor grado o aguardarei nesta Junta de Província, às 15 horas do dia por V. Ex.ª indicado em seu ofício de 20 do corrente, para se trocarem impressões sobre as diligências que há a fazer para a transferência daquela fundação que, no entanto, desde já se informa não pode efectuar-se sem que haja a intervenção do Poder Central, por intermédio de um decreto, visto ser por força de um diploma desta natureza que os bens do legado de Francisco José Ferraz foram confiados à administração da antiga Junta Geral do Distrito, hoje substituída por este Corpo Administrativo. Digne-se V. Ex.ª receber com os meus aplausos pela obra de grande alcance social e moral que vem realizando tam patrioticamente, a expressão do meu subido respeito. — A bem da Nação - O presidente (a) Almeida Garrett.»

Eis que se justifica plenamente, neste desenrolar histórico, sublinhar um episódio muito decisivo, que escutámos de viva voz a meu Pai, Júlio Mendes, dos Rapazes fundadores, e Padre Carlos Galamba referiu desta maneira: Em uma reunião para este fim, realizada no Governo Civil do Porto, estavam Governador, Representantes da Junta de Província e outras Personalidades com autoridade no Distrito e interesse na matéria. É aberto o diálogo e vários dos presentes tomam a palavra, opinando sobre a excelência da propriedade e suas potencialidades para isto e mais aquilo... Pai Américo, silencioso até ao momento, levanta-se, não interrompe ninguém com despedidas e sai da sala. Fica a assembleia em estupefacção. O primeiro a vencê-la é o Senhor António Russel de Sousa que corre atrás de Pai Américo e dá com ele já nas escadas para a saída. — Padre Américo, mas que aconteceu?... — ... Nada. Eu pedi Paço de Sousa para realizar, na Cerca do Mosteiro, aquilo que Deus me inspirou. Afinal há tantas opiniões e decerto boas — pois realizem-nas. E fez menção de descer. O Senhor Russel de Sousa (foi ele o autor deste relato), porém, não desanimou e conseguiu fazê-lo voltar à sala: — Tudo se explica. Vai ver que todos entendem. E, na verdade, tudo se explicou e todos entenderam. Um acontecimento que poderia ter tido por leitura: um acto de má educação; e todos acolheram como gesto profético.

Impõe-se, assim, dizer em breve nota biográfica quem foi este homem bom que conseguiu finalmente que Padre Américo fosse para Paço de Sousa, como mediador nesse encontro determinante — António Russell de Sousa. Nasceu em 21 de Janeiro de 1897, no Porto (Sé). Filho do Comendador Inácio Alberto de Sousa (e de Ângela Maria Russell), que fundou em 1894 a Litografia Nacional, no Porto. Foi industrial gráfico, Presidente da Comissão Municipal de Assistência do Porto, defensor da causa monárquica e teve carreira parlamentar na VI Legislatura (1953-57). Morreu no Porto (Massarelos), em 24 de Julho de 1969.

Da interessante correspondência trocada entre ambos, com a missiva seguinte, datada de 15 de Abril de 1943, de Lisboa, desdobrando as abreviaturas da sua escrita telegráfica, verifica-se que a questão foi resolvida da melhor forma. Ei-la, na íntegra: Meu Caro Amigo: Acabo de falar com o Ministro das Obras Públicas [Eng.º Duarte Pacheco], num quarto de hora muito feliz, a bem do Gaiato do Porto; depois falaremos. A Portaria n.º 10, digo de 10/4/1943, publicada no Diário de Governo de 14-4-43, manda à Junta de Província do Douro Litoral que entregue a Casa Pia de Paço de Sousa. Parece, pois, que temos o assunto finalmente arrumado. Peço-lhes o favor de falar ao nosso Governador, a ver se, na próxima 3.ª feira, à hora do Rápido, eu posso tomar posse na Junta, e no dia seguinte, 4.ª feira, tomar conta em Paço de Sousa. Avise-me por carta ou por telegrama para Coimbra. Peço mais o favor de comunicar com o nosso arquitecto [Teixeira Lopes], pois muito gostaria de levar comigo para Paço de Sousa, para apresentar ao mestre d'obras, os alçados de cada tipo de casa de habitação do Gaiato, a fim de começarmos a construir na 1.ª semana de Maio. A nossa obra marcha; levamos Jesus na barca! P. S. - O pequeno que veio do Albergue e que eu recebi na Casa do Gaiato, está no hospital; tem tinha, mas é meu. P. Américo!

E, por ora, dada a eloquência destas palavras, mais não é de dizer. Então, ficará para a próxima uma referência ao Auto de entrega da Casa Pia de Paço de Sousa ao Padre Américo, o que permitiu finalmente, com suporte jurídico, dar início à Casa do Gaiato das Ruas do Porto.

Neste ano de 2018, celebram-se felizmente 75 anos de vida, com uma imensidão de vivências e testemunhos, dos quais especialmente O Gaiato foi dando eco, para além de muitas outras memórias que se foram gravando também nos corações de muitos filhos que se fizeram homens (ou não).

Padre Manuel Mendes