PÃO DE VIDA

Pela vida humana

                                                                                                                   Senhor Jesus, eu não troco por nada deste mundo

                                                                                                a suprema ventura de curar com panos de linho

                                                                                                                                         os membros doentes do Vosso Corpo,

                                                                                                                                                                           considerados sem cura.

                                                                                                                                                                                          Padre Américo


Hoje, dia 28 de Maio, segunda-feira, é por demais evidente que o tema de grande actualidade na sociedade portuguesa é a eutanásia, considerando o debate em curso sobre a sua questão legal e a ética da vida terminal, que vai conduzir a uma votação no Parlamento. Esta questão foi designada impropriamente de despenalização da morte medicamente assistida, pois toda a pessoa humana deseja profundamente ser bem cuidada no ocaso da sua vida terrena e em todos os momentos de fragilidade pessoal, em especial na doença. Para nós cristãos, este é um momento muito importante para a afirmação da defesa da vida humana, pois toda a vida humana (e em todas as suas fases) tem dignidade. Jesus, o Bom Pastor, diz para nossa confiança e esperança: Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância!

Eutanásia entende-se, segundo o Papa João Paulo II, na encíclica Evangelium Vitae (n. 65) como uma acção ou omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de eliminar o sofrimento. Não há dúvida que uma situação é a pessoa dizer que quer morrer, outra é pedir que a matem. Em 13 de Maio, o Cardeal Arcebispo de Valladolid, Ricardo Blázquez, afirmou que a eutanásia não é símbolo de progresso e a morte digna é um eufemismo enganoso, porque há alternativas ao suicídio assistido, como os cuidados paliativos.

São de evitar a todo o custo exemplos negativos de leis sobre a despenalização, isto é, de legalização da eutanásia, com consequências imprevisíveis, depois de aberta a porta, como em alguns países: na Bélgica, as mortes por eutanásia têm aumentado desde 2002 e há a possibilidade para os menores; e na Holanda, em 2017 registaram-se sete mil mortes e até foi deferido um pedido de eutanásia de um casal de velhinhos, que não queria ser um peso para os filhos... Em Portugal, sem debate alargado e necessariamente profundo, com tamanha e estranha pressa, que é inimiga da perfeição e da razão, há parlamentares com a intenção de legislar sobre matéria (a morte provocada), que não apresentaram na altura própria, tentando assim fazer ruir deliberadamente um pilar civilizacional e constitucional — a inviolabilidade da vida humana. Assim, admitem que, em situações de doença prolongada ou terminal, se deixe de ser um fardo insuportável para si próprio e para a sociedade. Sendo, então, eutanásia sinónimo de morte, em vez de se procurar minorar o sofrimento humano, com esse cenário poderá afectar-se muito a vontade dos doentes, das suas famílias e amigos, e dos profissionais de saúde.

Para não se cair na tentação da eutanásia, sendo uma questão de relevância única, neste debate é de ter em devida conta o seguinte: o progresso da Medicina e da Enfermagem, o desenvolvimento de novos fármacos para atenuar sintomas e efeitos negativos da doença, bem como a desejada melhoria dos cuidados de saúde, em especial os cuidados paliativos e de apoio aos doentes, seus cuidadores e família. É fulcral para o futuro de Portugal e devia ser uma prioridade nacional o desenvolvimento das melhores condições (e gratuitas) de acesso à saúde para a população portuguesa, em especial a mais fragilizada, com justiça social, canalizando assim os recursos necessários para os cuidados dos (mais) doentes, da infância à velhice, dando-lhes toda a dignidade até ao fim da vida. Todos têm o direito a cuidados de saúde com qualidade. Para onde vai esta causa fundamental e qual a importância que é dada à Saúde, para o bem-estar e qualidade de vida dos portugueses e portuguesas?... Mesmo com algum desenvolvimento no acesso aos cuidados de saúde, o desinvestimento no sector aumenta as clivagens sociais, pois os pobres ficam à míngua e vão-se notando mais os cidadãos de primeira, segunda, terceira... que procuram cuidados para os seus males. Não é de negligenciar, ainda, o âmbito grave das doenças mentais, em que as rectaguardas hospitalares se foram desintegrando. Desta forma, na sociedade portuguesa (e noutras), é muito desejável que se vá pondo em prática uma cultura de mais e melhores cuidados pelos mais frágeis (crianças com doenças incuráveis, doentes psiquiátricos e enfermos em estado terminal, etc.), a exemplo do bom Samaritano, e se rejeite uma visão de poder dos mais fortes pelos fracos. É, pois, de investir seriamente em tratamentos e cuidados paliativos, alargados especialmente às pessoas de menos recursos e sem retaguarda familiar, que permitem assim viver melhor a própria morte.

Contra uma mentalidade eutanásica insensata, tem-se levantando um movimento social muito forte, coeso e abrangente de católicos, de outras confissões religiosas e pessoas de boa vontade, bem como especialistas, no sentido de esclarecer e reprovar tal iniquidade, pois pretende-se antecipar a morte a um ser humano, ao ser administrado um fármaco letal pelo próprio ou por outrem. Para a Ordem dos Médicos, a eutanásia e o suicídio assistido estão claramente fora da medicina portuguesa, não são nem podem ser actos médicos. Como outros que fizeram ecoar bem a voz da Igreja, o novo (e nosso) Bispo do Porto, D. Manuel Linda, afirmou claramente que o povo português não quer a morte, mas mais condições de vida. Trata-se, afinal, de um dilema (escolha) entre a vida e a morte. Este assunto, de extrema importância pessoal e social, tem contornos de uma grave mudança (retrocesso) civilizacional. Parecem esquecidos para alguma gente os nefandos crimes contra a humanidade, como a Shoah e o Terror vermelho. Diante daqueles que se atribuem um poder de vida e morte sobre os outros, entre uma multidão, há um exemplo brilhante de um homem que ocupou o lugar das vítimas: o franciscano Padre Maximiliano Kolbe (7-1-1894, 14-8-1941), que foi executado no campo de Auschwitz, oferecendo-se para morrer em lugar de um pai de família.

Entre nós, evocamos o Padre Américo, que se foi gastando, e bem, pela causa dos últimos, tendo tocado e vivido de perto grandes misérias e dores fortes, como nas tocas mais repelentes e no Hospital dos lázaros, na alta coimbrã, até à sua própria morte precoce no Hospital de Santo António, no Porto, em consequência de um acidente de automóvel. De tantos e significativos, eis um par de desabafos que nos deixou e dão mesmo que pensar: Certa maré, entrei na casa de uma leprosa de quem não se fazia caso, por medo do contágio. A roupa era aos montes que as lavadeiras não lhe pegavam. Eh! Tantos farrapos, disse. Sim, padre; tudo farrapos, menos o meu sofrimento! Mais, ainda: Tudo quanto há no homem de grande, sublime e santo, vem do sofrimento. O Papa Bento XVI, na Carta Encíclica Spe Salvi (n. 38), sublinha isso mesmo, dizendo: a grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre.

Seguindo também por alguns dos seus caminhos, nas proximidades de Coimbra, fomos acompanhando também a discussão sobre ajudar a morrer e matar a pedido, em que perfilhamos evidentemente sempre a defesa da vida humana. Veio mesmo a propósito um encontro ocasional (?) com uma pessoa amiga, que nos disse isto do fundo do coração: - Pedia-lhe que fosse visitar o meu pai ao hospital, pois ele gostaria de se encontrar com um Padre... Se S. Bento lembrou para nada antepor a Cristo, acreditamos que esta máxima se coaduna bem com o que escreveu S. Vicente de Paulo: O serviço dos pobres deve ser preferido a todos os outros e deve ser prestado sem demora, pois servir um pobre é também servir a Deus. Na verdade, a presença e o acompanhamento espiritual ao enfermo, pela dependência e o sofrimento a que as doenças nos conduzem, é um sinal da vida de Jesus junto dos frágeis e um tónico imprescindível para pacificar e curar o doente. Assim, houve que partir logo para um hospital, em que fomos acolhidos com abertura e respeito, mesmo em enfermaria com cuidados redobrados e na qual testemunhámos as excelentes práticas de enfermagem prestadas ao nosso amigo, ancião e doente. Depois, de mansinho invocámos o Médico divino e comungou feliz o Pão da vida! Durante esses momentos fortes, também de meditação, desejámos para todos os doentes, que se encontram em provação pela enfermidade, presenças amigas e os melhores cuidados de saúde e espirituais. Na verdade, todo o ser humano anseia profundamente por viver com saúde e em paz! Quanto mais débil, mais atenção, protecção e cuidado merece, segundo o mandato de Jesus - a Mim mesmo o fizeste.

Enquanto há vida, há esperança, diz o nosso povo. Toda a vida humana tem um sentido último, entre o nada e o infinito, em que a morte de cada ser humano é iluminada pela morte de Cristo. Sempre estranhamos o dito, no momento de baixar à terra: tudo acaba aqui... É, assim, paradigmática a fé de Job: Eu sei que o meu Redentor está vivo e no último dia se levantará sobre a terra. Revestido da minha pele, estarei de pé; na minha carne verei a Deus.

Post scriptum - Depois de redigida esta nota, vem ainda a tempo sublinhar o chumbo parlamentar da eutanásia, ao cair da tarde do dia 29 de Maio. Apenas este comentário da Associação dos Médicos Católicos Portugueses, por Pedro Afonso: Os médicos não têm outra vocação senão estar ao lado da vida, tratando e aliviando o sofrimento dos doentes, e garantindo os cuidados paliativos a todos aqueles que deles necessitam.

Padre Manuel Mendes