PÃO DE VIDA

Do Mosteiro à Casa do Gaiato

Foi tanta e tamanha a vida dos conventos

que levam séculos a morrer!

Resistem ao tempo,

aos incêndios, aos vandalismos.

Padre Américo

Em alguns momentos sentidos de paragem no núcleo histórico de Paço de Sousa, como em 26 de Setembro de 2017, com outros Padres da nossa Obra, foi-nos possível verificar in loco o andamento da requalificação do Mosteiro de Paço de Sousa, em especial os interessantes vestígios arqueológicos revelados a nascente da capela-mor e do cemitério, em terreno da Casa do Gaiato de Paço de Sousa. Aconteceu pois que, em 18 de Abril de 2017, teve início um conjunto de obras, escavações arqueológicas, trabalhos de conservação e restauro no Mosteiro beneditino do Salvador de Paço de Sousa, da Rota do Românico, nomeadamente na actual Igreja paroquial, com três extensas naves, da transição do românico para o gótico.

Vem isto a propósito da comemoração dos 75 anos da fundação desta Casa, pois nesse mesmo lugar teve início outra comunidade de garotos da rua — Gaiatos — cujos primeiros Rapazes foram chegando da Casa-Mãe, nas cercanias de Coimbra. Nesse torrão de Paço de Sousa, muito ligado à fundação da nacionalidade portuguesa e pegado à terra natal (Galegos) de Padre Américo, onde deu os primeiros passos, foi dando assim outros passos seguros e fortes, de gigante da Caridade, com 55 anos de idade...

Sem dúvida que Paço de Sousa é um rincão com uma riquíssima história de séculos, em que o mais antigo documento existente, no Livro dos Testamentos, é o testamento do Abade D. Randulfo (22-2-994), ao Mosteiro de Salvador, in uilla Palacioli. De notar que, no século X, em território da Anégia, nas faldas do monte de Ordins, margem esquerda do Rio Sousa, foi fundado um velho cenóbio por D. Truitesindo Galindiz, que era tetravô de D. Egas Moniz († 1146), cujo nome (Gamuz) se encontra muito ligado à toponímia desse lugar tão significativo (torre, carvalho, ribeiro, ponte, presa e fonte). Célebre como Aio de D. Afonso Henriques e símbolo da lealdade portuguesa, foi seu Mordomo-mor (1135-1146) e terá sido o chefe da revolta contra D. Teresa e Fernando de Trava, desde Riba Douro até à batalha de S. Mamede, em Guimarães (24-6-1128). Tal como seu filho Mendo Viegas († 1137) e outra nobreza, foi enterrado com cenotáfio na Igreja de Santa Maria do Corporal (a norte e demolida em 1605).

De todo o povo simples e bom desta terra debaixo do sol, entre os monges beneditinos desse Mosteiro, homenageamos aqui três figuras gratas: D. Frei João Álvares, Abade reformador do Mosteiro, que conseguiu do Papa Paulo II a Bula de confirmação (10-1-1470) das novas Constituições; o Irmão Donato Fr. Manuel de S. Francisco, devotíssimo de Nossa Senhora e frequente em visitar o Santíssimo Sacramento, que morreu em cheiro de santidade († 18-12-1759); e Frei António da Assunção Meireles, um grande historiador beneditino, autor das Memórias do Mosteiro e enterrado no claustro, aos 47 anos († 15-6-1801). Contudo, lamentamos profundamente o decreto persecutório de 28 de Maio de 1834, de extinção das Ordens Religiosas, alegando serem prejudiciais à população... Expulsos à força os religiosos dos seus conventos, em tristes cenas de agonia, houve pilhagens e destruições, com perdas irreparáveis para a nossa história e cultura, como as livrarias monásticas, verdadeiro Património da Humanidade...

O Mosteiro de Paço de Sousa, depois de uma gloriosa existência de cerca de nove séculos de vida e evangelização cristã, foi entretanto comprado (com parte das suas propriedades, depauperadas em 1614 para os Jesuítas) por António Nunes Teixeira, comerciante do Porto. Em 23 de Março de 1871, aconteceu a arrematação judicial do Mosteiro e da cerca, no Tribunal do Comércio, no Porto, avaliado em 8 320,20 réis, e foi seu comprador Francisco José Ferraz. Em 1873-1874, Frei João de Santa Gertrudes Leite de Amorim, ainda tentou restaurar aí a vida beneditina... Porém, em 16 de Junho de 1876, por 14 mil réis, a Comissão Administrativa da Casa Pia comprou o convento e a cerca para aí instalar essa instituição. Depois, seguiram-se pavorosos sinistros, que fizeram germinar uma valorosa Corporação de Bombeiros, a comemorar 80 anos de vida por vida (1938-2018). Na madrugada de 9 de Março de 1927, a Igreja paroquial sofreu um incêndio e o laborioso povo da freguesia ajudou a libertá-la dos detritos enegrecidos, seguindo-se obras de restauro, que foram inauguradas em 1 de Setembro de 1929. Na tarde de 21 de Outubro de 1940, ardeu a ala sul do antigo convento; e, em 15 de Fevereiro de 1941, um ciclone também causou estragos na freguesia de Paço de Sousa. Outras páginas desta história milenar continuaram a ser escritas nos campos, nas pedras e nos rostos desse lugar sagrado, outrora dos filhos do Patriarca S. Bento, testemunha antiquíssima de fé cristã arreigada.

Tal como Antoine de Saint-Exupéry legendou em 1943, para quem só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos, e a exemplo de S. João Bosco, santo dos Rapazes e homem de sonhos tornados realidade, o Padre Américo manifestava-se um verdadeiro homem de Deus e dos pobres, cuja fé inabalável em Jesus Cristo vivo lhe permitiu escrever, também nessa altura, este belo sonho:

Sonhara uma Aldeia com casinhas a espelhar, habitada por garotos da rua a cultivar a terra e a comer o pão com o suor do seu rosto. Vi escolas e oficinas; pomares e jardins; folguedos e descantes. A igreja era no meio. Crianças entravam ao repicar de sinos e dentro havia a mesma legenda dos antigos frades, num fundo de glória: ora et labora.

Nisto abri os olhos e nada mais vi do que as ruínas do convento descarnado. Era um sonho!

— Fique por aqui, Padre; não vá para Arouca - repete o mesmo senhor.

Quantas vezes não teria sonhado com novos mundos o Infante de Sagres? Há sonhos que não são fantasia.

O auto de posse foi lido por um magistrado, solenemente. Nele se diz que eu sou o director da Casa e que fico isento de selo por não ser retribuído. Um senhor a quem contei a minha vida, deu-me trezentos contos de uma assentada, condoído; e mandou-me calar o nome.

É de realçar, ainda, que Pai Américo foi traçando um rumo bem definido para a sua acção: O objecto da minha paixão é dar uma pátria aos estrangeiros que vivem nela; dar uma lei aos deles que vivem à margem da lei; marcar lugar e pôr a mesa aos que vivem sem talher. Dentro da mesma paixão, encontrei o seu equilíbrio: Se gratuitamente me fora dado o sentido dos males alheios, gratuitamente me obriguei ao trabalho de os aliviar, porquanto, àqueles a quem muito se dá, muito se pede.

Adiante, veremos então alguns dos intervenientes amigos e decisivos destes momentos fundantes. E seguiremos, nesta pequenina antologia, agarrados às fontes disponíveis, permitindo assim seguramente continuar a cerzir os primórdios da sede da Obra da Rua.

Padre Manuel Mendes