PÃO DE VIDA
Do Mondego ao Sousa
Se não és pai, não és mestre. — Pai Américo
Na sociedade portuguesa, fugindo a uma verdadeira e profunda política de futuro e saúde da Família, com ética e justiça social, há temas fracturantes — a eutanásia, as barrigas de aluguer (com anonimato dos dadores e negócios à vista) e a ideologia do género (com mudança aos 16 anos, sem relatório médico?) — que vão girando na ribalta, em parangonas e fóruns, baralhando e encrespando as opiniões de certos sectores da população, sujeitos a uma agenda capciosa e estranhamente apressada. Porém, na procura de esclarecimentos seguros, têm-se efectuado debates eclesiais sérios e levantado algumas vozes cristãs com fundamentos éticos e lamentos sobre projectos de articulados legais (?), ditados por perspectivas contrárias à ética cristã e de quem não olha a meios para atingir os fins (do Homem?), numa rampa deslizante. Entretanto, chegou a notícia triste da partida do pequenino Alfie, em Inglaterra, cuja Justiça (?) não ouviu os apelos autorizados do Papa Francisco, que sublinhou os limites das Ciências: nem tudo é eticamente aceitável. Na verdade, os cristãos não podem pactuar com o desrespeito pelo tesouro da vida humana e não devem ter medo de afirmar e esclarecer, alto e bom som, o que é claríssimo, da Biologia à Teologia: a vida humana, fruto do amor do homem e da mulher, é única e tem valor inalienável em todas as suas fases, desde a concepção à morte natural. Quem deseja resultados desastrosos como a hecatombe demográfica que tem havido em Portugal e o desinvestimento em cuidados paliativos?... Veja-se, v.g., que, na Bélgica, a eutanásia foi praticada a uma jovem por uma doença psíquica. Os profissionais de saúde e a população em geral, que tem de recorrer aos hospitais e passa longas horas em urgências, sentindo tantas situações aflitivas, vão percebendo os perigos dramáticos desta questão - da vida e da morte...
O clima de tensão internacional continua muito preocupante e eternizado nomeadamente no Médio Oriente e em África, e parece ter-se distendido entre as Coreias. Muitas pessoas vão sendo perseguidas pela sua fé cristã e inúmeras vidas humanas são destruídas em muitos focos do Globo, por guerras violentas (com a maioria dos armamentos fornecidos pelas potências mundiais) e terrorismos obscuros e sujos.
Há cerca de setenta e cinco anos (1943), as preocupações existenciais eram outras e verificavam-se vincadamente nas necessidades básicas. As populações iam sobrevivendo aterrorizadas e desesperadas com a desgraça da II Guerra Mundial. Depois, em 6 de Junho de 1944, no dia D, os exércitos aliados desembarcaram na Normandia para libertar a França, a Bélgica e os Países Baixos, e invadir a Alemanha.
Nesse quadro bélico mundial, cuja miséria consequente também afectou gravemente Portugal, se inserem as inquietações da Igreja desse tempo, com destaque para a Acção Católica, as Conferências Vicentinas e vozes autorizadas pela tarimba e de quem não se resignava com a pobreza imerecida, como o Padre Américo, nas periferias da Universidade de Coimbra. Deste modo, vamo-lo acompanhando e continuando no seu itinerário de promoção social, do Mondego ao Sousa. Temos em vista apenas fazer memória, concatenando alguns fios simples de um tecido de serviço aos pobres e que crescia com os primórdios da Casa do Gaiato das Ruas do Porto. Então, ia deixando o berço em Coimbra, mas não a ajuda, e dava outros passos firmes por dores também tamanhas. Basicamente da sua pena ferida e fidedigna, são notas que foram saindo nas horas e nos próprios lugares dos pobres e aflitos, por quem foi pedindo de joelhos e lançando com muita fé os caboucos de uma bola de neve e orientando (com licença dos Bispos) uma Obra que nasceu na Rua para quem tinha fome e não sentia o calor da lareira, em tempo de filhos de pai incógnito... Entre outros, eis, pois, um retrato eloquente dos seus encontros muito sentidos no Porto, também marcado por um cenário infelizmente real de carências e vadiagem infantil, e de gente que foi desaguando nas cidades, por miragens e mão-de-obra barata, considerando também a pobreza nos campos:
Ontem, nas ruas do Porto, topei um grupo de cinco garotos a comer cascas de pêras, do chão. Entrámos todos no mercado do Anjo, à fruta.
— Dê-nos antes pãozinho!
Esse pãozinho que tu desperdiças sem respeito por quem anda de rastos!
Estamos no tempo de bradar aos Céus a opressão dos Pobres e das Viúvas. O mal já chegou à espinha da sociedade. Venho aqui denunciá-lo em nome da Humanidade por quem há muito me sacrifiquei.
Embora discreto nos tugúrios, sendo conhecido e inquietado como Apóstolo das Ruas, porque confiavam nele, ia dando passos seguros, escrevendo notas semanais e fazendo história nova em matéria de amparo das crianças sem eira nem beira — o lixo das ruas. Respigámos, assim, mais outro comentário sobre sinais dos tempos:
Tem-se levantado a voz nos jornais de Portugal, a denunciar a Criança abandonada, às chusmas, por toda a parte. É verdade tudo quanto ali se diz a esse respeito, e não se diz a esse respeito, e não se diz nunca o bastante, por escapar à nossa observação o maior de todos os males: — a ruína das almas que é péssima, porque elas são óptimas. Ora como a quinta que serve a Obra da Rua, é muito limitada, daí vem a urgência de procurar outra maior que se chame e seja de facto a primeira aldeia de rapazes na nossa terra.
Sim. Se sabes, fala. A hora dos verdadeiros triunfadores vem depois da Guerra, que são justamente aqueles que se ocuparem, com devoção, da sorte dos pequeninos sem lar. Eu já ando na lida, mas quero mais rede.
Com confiança na promessa divina e no mandato do Mestre — sempre que fizeste isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes — foi chegando a hora de se ir desprendendo de Coimbra, não dos pobres, desta maneira tão airosa:
A Obra da Rua vai ocupar-se na capital do Norte precisamente dos mesmos trabalhos que tinha em Coimbra: apanhar Farrapos nas ruas. Já os tenho topado no turbilhão da cidade a informar de sítios onde se come: — Venha, que ali há iscas.
Entrámos todos numa ampla sala onde imensos empregados comem das suas cestas os seus almoços. Os pequenos vão direitinhos ao homem que parte pães e entala iscas. Tomo algumas que não pago, porque alguém se adianta!
Fora, fizemos as despedidas amigavelmente: — Olhe, eu durmo nos portais. Se me quiser para si, leve-me que eu vou.
Pela boca morre o peixe!
Durante uma data de anos chamei daqui [Correio de Coimbra] e fui escutado; o Evangelho é a Palavra actual, compreensiva, humana: Jesus Cristo e Homem verdadeiro.
Hoje, na despedida, agradeço fervorosamente aos apaixonados da Obra da Rua, aos indigentes, aos inimigos.
Como Procurador dos pobres, Pai Américo foi calcorreando caminhos e atalhos, como na época estival, em que a batina negra é bênção e maldição: Tenho ocupado o meu tempo, nesta quadra do ano, em visitas aos aglomerados das Termas e das Praias, a pedir pão para os Humildes; e as almas que me escutam tais confidências me fazem, que eu sinto e colho a certeza de que o meu pedir é dar. [...] Nada me tira a vez; ninguém ocupa o meu lugar. Trata-se de um Padre que vai pedir. Um pai a pedir pão para os filhos, foi sempre, em todos os lugares, uma coisa muitíssimo séria. Padre quer dizer Pai e os Desgraçados são os seus filhos, pela natureza do sacerdócio. Esta verdade simples e crua assombra, cala.
A força do sacramento da Ordem, a sinceridade da missão, a convicção da palavra, a verdade dos factos — tudo isto acende tal fogueira no meio dos circunstantes, que os corações dilatam-se e não cabem no seu lugar. O alvoroço do Evangelho afirma-se, o valor real do homem aparece, e os ouvintes sentem-se pequeninos e batem no peito, de arrependidos.
Como verdadeiro servo dos Pobres e pastor da Igreja, ia afirmando a sua paternidade sacerdotal e testemunhando o amor do próximo, pondo em prática as palavras de Jesus, do Juízo Final, consignadas em obras de misericórdia — tive fome e destes-Me de comer, era peregrino e recolhestes-Me...
Entretanto, na viagem empreendida, de um manuscrito seu, intitulado Algumas Notas Exteriores, pois que por elas se costuma julgar a verdadeira Igreja e também as suas obras, destacámos um parágrafo com esta síntese da sua acção, nesse tempo: Um dia que ele [Padre Américo] saiu de Coimbra com destino a Arouca, estudar a posição jurídica do convento, para o requisitar, sem querer nem saber como, fica neste de Paço de Sousa, e aqui funda a Casa do Gaiato do Porto.
Como se vai comprovando com fundamento, manifestava-se a urgência de outra Casa do Gaiato e que foi nascendo em Paço de Sousa, pelas condições encontradas e pela sua compaixão pelos garotos das ruas, grande perseverança e mediação de amigos verdadeiros, como executor da Graça divina, pois a Deus nada é impossível.
Padre Manuel Mendes