PÃO DE VIDA

Da oração de Fátima

A Virgem Maria mostrou o seu Filho descarnado,

a viver com animais, como os animais!

Padre Américo

As deficientes condições habitacionais e alimentares de grande parte da população, nomeadamente em Portugal e na Europa, notórias na primeira metade do século XX, agravadas pelas conjunturas da I e II Guerras Mundiais, foram um rastilho incandescente para que o Padre Américo, como Procurador dos Pobres, ajudasse a desinstalar mentalidades e interesses sobre uma necessidade premente, de justiça social, e procurasse deixar sementes aos vindouros: uma casa digna, para restituir dignidade aos Pobres sem abrigo, à luz do Evangelho: era peregrino e recolhestes-Me.

Para conseguirmos um retrato o mais fiel possível deste dinamismo profético, impõe-se aqui dar à estampa ainda a outra parte substancial da tal oração de dez minutos, do Padre Américo, em Fátima, a 13 de Maio de 1952, também transcrita da gravação que a registou para a posteridade. Ora, eis: E dilatando mais um bocadinho a nossa oração em conjunto, vamos a ver o que é que vos trouxe aqui?/ Oh, certamente pedir cada um para si. O mundo pede assim. É uma maneira subtil de justificar o nosso pedido: Senhor eu quero, Senhor eu preciso, Senhor eu desejo. Não basta, nem o Mestre ensinou assim. Venha a nós o Vosso Reino. Irmãos, peçamos para os outros e assim fazemos justiça [...] no mundo como se não as usássemos. E assim fazemos todos justiça. E peçamos como vou hoje aqui pedir a todos, uma coisa do tempo, necessária. Abrigar os nossos irmãos, libertá-los das moradias imundas e impróprias em que vivem. Vamos construir casas pequeninas para a vida pequenina dos nossos irmãos que com tão pouco se contentam. Há dias procurou-me uma viúva de seis filhos e disse-me: "Se Você me der 50$ por mês, se me garantir, eu crio, eu crio com o meu bafo estes filhinhos que tenho." Não é preciso mais nada, a mãe faz milagres. O amor da mãe santifica os filhos e opera milagres. Assim, aqueles que vivem nas tocas vamos buscá-los para casas próprias. Eu sei que desde Abril do ano passado a Abril deste ano se construíram 26 casas que estão já subidas e ocupadas por Pobres. Não importa saber onde, nem importa saber como. É inspiração de Deus. É fazer justiça. E também sei que muitos sacerdotes à frente das suas aldeias em vários distritos de Portugal comunicam-me a dizer como é que se começa. E eu digo: AMAR, AMANDO!!! E como se arranja dinheiro? AMANDO! E a quem se vai pedir? A ninguém: AMA-SE. O Pobre, as chagas do Pobre, beijam-se as chagas do Pobre como fazia Francisco de Assis no seu tempo e não foi preciso mais nada, para ainda hoje ele ser o mesmo que foi há dez séculos, o Homem revolucionário. / É uma oração que eu faço aqui diante de todos e é tal a minha veemência que eu estou convencido, mais do que isso, eu sei de certeza que alguns hão-de ir para as suas paróquias e para as suas terras por um caminho diferente daquele que vieram para aqui; quero dizer, pensando de outra maneira, talvez arrependidos de se encontrarem só consigo mesmo nos pedidos que fazem e não saberem dizer a oração do Mestre: "Venha a nós o Vosso Reino"./ O Reino da Justiça e isso basta. Sem justiça não há paz; sem justiça não há amor; e o amor e a paz que se proponha sem justiça pode ser um nome bonito, apresentado lindamente, mas é um nome e não passa daqui./ E dinheiro para as casas? Não perguntes; essa pergunta é profana; isso fazem os publicanos e os pecadores. Então quê? AMA e AFLIGE-TE. E a justiça sendo uma força imanente e viva produz o milagre./ Para terminar esta oração: A semana passada contaram-me e eu não quis acreditar e fui ver, irmãos, fui ver com estes olhos [que a terra há-de comer]./ Eu fui ver e num curral, juntamente com os animais que lá estavam, vivia uma família de seis e uma criança no berço. E quando eu entrava diziam: "olhe que cheira aí muito mal, não entre". Mas eu ia justamente para tirar o mau cheiro, e já está uma casa quase em meio ao pé daquele curral. Aquela família de sete já vê pôr vidros nas janelas, já vê outras casas semelhantes onde têm outros a mesma sorte [e] contentes com a certeza./ Quem operou o milagre? A Justiça./ Onde está o dinheiro para pagar essa casa? Não é da minha conta. Da minha conta é sim colocar lá aquela família./ Irmãos queridos vou-me embora./ Perdoai-me o atrevimento, mas eu termino como comecei. Eu não sei viver mais nada, eu não sei dizer mais nada, eu não sei sentir mais nada, senão somente o Pobre e este crucificado./ Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

Assim podemos compreender melhor o movimento nacional de construção de casas para pobres, cuja chama ateou no Santuário de Fátima. Ainda da sua pena, veio à luz no jornal O GAIATO, a 27 de Fevereiro de 1954, esta revelação: Nós estamos na presença de um facto extraordinário. Não lhe vamos naturalmente dar o nome de milagre, mas apreciá-lo à Luz do Céu, isso sim. Isso devemos fazer para dar alimento à alma. O Património dos Pobres nasceu em Fátima, a treze de Maio de há dois anos. A semente foi lançada por um padre da rua. Alguma dela foi comida pelos passarinhos. Outra nasceu, mas veio o sol e queimou-a. Houve dela que resistiu e chegou a crescer, mas a erva ruim também e afogou-a. Houve ainda muita semente que o Diabo apanhou. Finalmente, vem o oiro mai-lo azul. Terra boa, pronta, sequiosa. A semente não se discute. Dá com o seu elemento e rende a cento por um. Estamos na presença de um facto maravilhoso.

Quanto à personalidade jurídica das habitações que se foram construindo, no seu pensamento e na época, acertou e encontrou a solução: a Igreja. Com o rolar dos anos, acontece que as situações das casas não regularizadas, a conservação das moradias e a promoção (desejada) de pobres moradores foram exigindo e urgem novas medidas e responsabilidades, inclusive dos próprios. Também as temos sentido, na região centro, nomeadamente em Coimbra. Para além da doação ou venda aos seus moradores, parece-nos que a figura jurídica do contrato de comodato (gratuito), previsto no Código Civil (Artigos 1129 a 1141), pode enquadrar as situações ainda de matriz eclesial.

Sobre os primórdios deste sonho real de Padre Américo, veremos as causas mais profundas da sua inquietação, que remontam aos seus encontros de Recoveiro dos Pobres, com chagas vivas em Coimbra e que narrou de forma magistral n'O Ovo de Colombo.

Padre Manuel Mendes