PÃO DE VIDA
Por um pombo-correio
Em bom ambiente de perfume das aleluias pascais, alguma garotada sobressaltou-nos pela positiva, destacando-se certos miúdos mais afoitos e atentos com os quais topámos uma presença inesperada, mas amiga: a chegada de um lindo pombo-correio, que nos resolveu visitar pertinho da Páscoa, em Domingo de Ramos, depois dos rapazitos terem agarrado ramos de oliveira, como troféus, para a bênção esperada. Foi por ocasião da hora frenética da merenda, em que a gaiatada se costuma acotovelar e engalfinhar em cata do melhor repasto, mesmo que se prepare na equidade. Serenamente, a dita avezita pousou e passeou alegremente no meio da pequenada, dos átrios aos jardins, subiu também ao telhadito da sineta, entretanto desceu outra vez e foi entrando teimosamente na cozinha e no refeitório, onde se empoleirou e aconchegou bem, sem manifestar vontade de lá bater as asas. Que motivo a deixou ir ficando connosco e que possível boa notícia teria intenção de nos trazer? A nossa Comunidade ficou muito surpreendida pelo seu à vontade, sem medo de nada nem de ninguém, revelando muita proximidade e perseverança em permanecer com a criançada. Porém, o momento mais difícil deste encontro foi o convite a regressar de novo ao seu meio natural, obrigando-a a esvoaçar pelos céus, antes do sol-posto, levando porventura tal boa notícia a outras paragens. Como tem chovido muito em Março, o nosso pensamento também foi voando para um acontecimento distante, mas interessante, do tempo bíblico de Noé, com um resto de povo, em que uma pomba voltou para a arca, trazendo no bico uma folha verde de oliveira, enquanto as águas cobriam a terra, e acabou depois por anunciar a bonança e a vida em abundância. Chuvas e orvalhos, bendizei o Senhor!
Neste ofício de caridade muito rasteirinho, tem sentido obrigatório calcorrear lamas de tugúrios impróprios para seres humanos, embora os insectos indesejáveis (das burocracias e hipocrisias) é que perturbam muito mais este frágil serviço aos pobres. Da rotina da agenda, veio um alerta para pegar na pena/tecla e parar, mas surgiram evidentemente interrupções e lamentações com razões, que nos levaram ao terreno: — Tenho muita pena que os meus netos não estejam baptizados. — Sou a mãe do M. e preciso muito de ajuda, pois não tenho comida. — Amanhã, vou ao SEF começar a tratar dos papéis do meu filho mais pequeno [que nasceu em Portugal e tem uma malformação do crânio...]. — Pode receber um rapaz, pois o pai morreu?, etc.. Era por alturas da festa de S. José e estava próxima a Páscoa do Senhor Jesus. Antes, tinha sido para nós um bom exercício prestar a atenção devida à força e à marca que o nome e a vida do Pastor Universal vêm imprimindo na nossa Igreja. Por sinal, nesse dia 19 de Março, o Papa Francisco lembrou na rede social twitter um conselho pertinente: Queridos Pais, felicitações pelo vosso dia! Sede para os vossos filhos como S. José: guardiões do seu crescimento em idade, sabedoria e graça. Quem não sente a grande proximidade ou recorda com imensa saudade e eterna gratidão viva o seu querido Pai?!...
Numa linha ampla de sentido e da verdadeira paternidade humana e espiritual, vejamos de relance e em simples passagens alguma da água límpida que foi correndo, como um rio caudaloso de boa nascente, do legado espiritual de Pai Américo à Igreja em Portugal, desde (e antes) a sua ordenação presbiteral, em 28 de Julho de 1929. Isto porque, há dias, fomos desafiados outra vez para fazer memória pública, justa e grata, do Bispo de Coimbra D. Manuel Luís Coelho da Silva, em ligação com Américo Monteiro de Aguiar (AMA), que acolheu no Seminário de Coimbra e o ordenou — Padre Américo! Sublinhámos aqui um cibinho de algumas palavras muito sentidas, de saudade, que registou gratamente no Correio de Coimbra, por ocasião do passamento deste grande homem da Igreja (a 1 de Março de 1936), pois revestem-se de alto significado, ao sublinhar: ele era o nosso pai espiritual! [...] Deu-me Ordens sacras, fez-me sacerdote: o maior de todos os títulos, para a maior de todas as gratidões. E, nessa coluna semanal, notou o carinho dos pobres por este grande batalhador: A população das tocas acudiu à passagem: setenta famílias de fome embrulhadas em farrapos.
Com este inciso, de um breve retrato social da miséria de Coimbra, então percebe-se melhor uma confidência do Recoveiro dos Pobres, dilacerado pelas suas dores de cabeça e dos últimos de Coimbra, quando, em 19 de Março de 1932, o seu Bispo lhe confiou a Sopa dos Pobres: Doente, como então era, o meu Prelado havia-me dispensado de todas as obrigações, tendo eu tomado esta de visitar Pobres, por não servir para mais nada. Foi assim que, depois [no livrito Ovo de Colombo, em 1954], como grande escritor português cristão, cronista das dores e amigo dos pobres, lembrou com amargura estoutra martelada no seu coração misericordioso de servo e pastor: Já vão anos e anos e ainda hoje guardo no peito a minha primeira visita a um tugúrio, em Coimbra. Era a senhora Amélia, que tinha engomado gerações de estudantes e agora, cega e velhinha, cuidava de três netos de uma filha infeliz, cada um de cada homem e todos eles sem pai.
Por isso, num itinerário de crucificado, imitando o Senhor, em cura pessoal e social, uma década depois do mandato do seu Bispo, acabou por ir escrevendo também com ternura pelos seus filhos, que lhe deram outro título — Pai, numa previsível evolução fonética e semântica, que de Padre fez Pai Américo. Manifestou-se uma verdade simples, desde os primórdios na boca e na memória dos seus filhos e do povo, saída ex ore infantium, a exemplo do Mestre - Da boca dos pequeninos e das crianças de peito fizeste sair o louvor perfeito. Ora eis, pois, esta pequenina e linda meditação que Pai Américo deixou aos seus vindoiros, confirmando a sua paternidade: Sentado à sombra de uma oliveira, na orla da Casa do Gaiato, respira a gente, ao fazer desta, do ar perfumado do tempo, ouve o cantar dos passarinhos; e sente na alma a riqueza espiritual de uma Paz duradoira, reflexo da imutabilidade de Deus. Em baixo, os três pequeninos, por não terem obrigação, colhem papoilas nos campos: — Pai Meco, olhe!
É muito interessante ver que duas décadas depois, na História eclesial, foi dado realce a este título de Padre [Pai] num texto significativo sobre a missão dos pobres na Igreja, chamado Pacto das Catacumbas, assinado por 39 Bispos, em 16 de Novembro de 1965, no contexto do II Concílio do Vaticano, na Catacumba pobre de Domitila, onde se mantém viva a tradição da Igreja dos marginalizados e perseguidos da antiga Roma. Celebraram a Eucaristia e apelaram à pobreza e simplicidade de vida, segundo o Evangelho de Jesus. Então, nesse compromisso concreto (n.5), disseram isto mesmo: Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre [Pai]. De facto, tal título é sinal de paternal afecto e proximidade pastoral.
No nosso tempo digital e num mundo globalizado, com o avanço da investigação científica sobre o ADN e depois do ferrete de outrora dos filhos ilegítimos, seja-nos lícito porém questionar alguns rumos cinzentos (infelizes) de leis, técnicas e práticas que vão ocasionando um crescendo de orfandade familiar e social, nomeadamente na Europa (ainda de matriz cristã?) e também noutros Continentes. Parece-nos que, em vez de se apoiar mais seriamente (concretamente e com ética) os pais que tanto o desejam e o procuram ser de verdade, se vai experimentando por labirintos, biológica e clinicamente, com a paternidade-maternidade de cada novo ser humano, pois nem tudo deve ser permitido.
A verdadeira paz que Jesus nos trouxe passa basicamente e muito por uma família estável, em que os pais (pai e mãe) devem ser colunas, para-raios e os maiores amigos! Sem a presença de José, em Nazaré, como se poderia conceber a infância de Jesus, serena e aberta ao mundo dos pobres? E sem Maria, desde o calor da manjedoura ao madeiro duro do Calvário, como poderia Jesus suportar com coragem a Sua vida de entrega total e o abandono da Cruz? Qualquer família, sem as figuras de referência pai — mãe, fica muito mais pobre, pode-se deturpar, desagregar e não cumprir bem a sua missão de célula-base de uma sociedade saudável e construtora da paz. Com o devido respeito, como se percebem os fundamentos éticos de uma figura impropriamente dita de casal (par) e que se tenta igualar à conjugal, com consequências de confusão parental? Ainda se verifica que vão crescendo as situações em que um dos progenitores tem de suportar o peso total da cruz, como acontece em famílias monoparentais, por razões forçadas.
Nesta simples e agitada vida comunitária, numa missão de procura da paternidade de um resto social, procurando remendar panos rotos, há sinais claros de ausências forçadas de pais e mães - que já partiram, distantes, emigrados, separados... Daí deduzirmos que a refilice pegada e dificuldades notórias de concentração possam também ser evidências de chamadas de atenção e de consolação, desafiantes do exercício paterno — materno. De tantas re/petições, vai uma dezena: — Posso tocar a sineta? Já vou! Quero repetição [de comida]? Não sou da obrigação. Não fui eu. Chamou-me nomes. Preciso de papel... Olhe esta ferida, tem um penso? Quero uma bola. Podemos ver televisão? O Norberto e o Mário, barrigana, depois de olhos fitos na Cruz de Jesus na celebração da Paixão, queriam mesmo um rasgado elogio: — Hoje, portei-me bem?! Na verdade, quem pode ficar insensível (logo de pequenino) à visão do Corpo ensanguentado do Crucificado?...