NOS 130 ANOS DO NASCIMENTO DO PADRE AMÉRICO

Dentre os acontecimentos celebrativos recentes dos 130 anos do nascimento de Pai Américo, ficou por anunciar que não por realizar, no dia 21 de Outubro, o Colóquio com o tema «Diálogo em torno da Obra da Rua, Casa do Gaiato e Calvário», na U.C.P. no Porto. Nasceu na inquietação do Sr. José da Cruz Santos partilhada connosco, para lembrar Pai Américo no «seu exemplo humaníssimo e a sua palavra profética».

Nele participaram D. Januário Torgal Ferreira, Bispo Emérito das Forças Armadas, a Presidente da UCP Porto, Dr.ª Isabel Braga da Cruz, o Dr. Gil Moreira dos Santos, o Dr. Henrique Manuel Pereira, o Cón. Jorge Cunha, a Dr.ª Isabel Ponce de Leão, a Dr.ª Maria Manuela Lopes Cardoso e o Dr. Fernando Reis Lima, que com muita amizade transmitiram aos presentes a sua palavra muito pessoal em jeito de testemunho.

Também o Sr. Cruz Santos fez chegar aos presentes o seu sentir, que agora reproduzimos.

Não conheci o Padre Américo, mas assisti ao seu funeral que saiu da Igreja da Trindade no Porto. Era ali bem visível o profundo luto em que estava a cidade. Visitei a Casa do Gaiato várias vezes, mas só por volta de 1976, há quarenta anos, é que pude aproximar-me mais, pois conheci então uma pessoa extraordinária, um desses seres, como dizia Saint Martin no século XVIII, através de quem Deus nos ama: o Padre Carlos Galamba, sucessor do Padre Américo à frente da Obra da Rua. O Padre Carlos, de quem D. António Francisco dos Santos, que tivemos o privilégio e a alegria de ser o nosso Bispo do Porto, disse uma vez: Era um Santo.

Pude então, dizia, com benevolência generosa do Padre Carlos, começar a organizar e com a ajuda do meu amigo Dr. Zeferino Coelho, a obra Padre Américo - Páginas Escolhidas e Documentário Fotográfico, e isso aproximou-me mais da Obra da Rua e a partir daí eram frequentes os meus contactos com o Padre Carlos com quem aprendi a bondade, tolerância, serenidade. Por ele ia sabendo dos problemas que a Casa do Gaiato enfrentava, por indiferença, e pior, por ignorância dos poderes políticos. Bastará dizer que desde o 25 de Abril todos os Governos se recusaram a receber os responsáveis pela Obra da Rua, que muitas vezes solicitaram audiência a fim de exporem os seus problemas.

No entanto, naquela que era considerada a obra mais importante da Igreja Católica em Portugal no Século XX, milhares de crianças ressuscitaram para a vida, numa acção pedagógica inovadora e sem paralelo cá dentro e talvez lá fora. A Casa do Gaiato não é um asilo, uma tutoria, uma casa de correcção, com fardas, portões, directores. A Casa do Gaiato era e é uma casa de amor e de trabalho, onde os ensinamentos se fazem através do exemplo e de disciplina que terá de haver sempre entre pais e filhos. O pão que os gaiatos comiam com o resultado do seu trabalho tinha outro sabor. Era também uma das razões porque Padre Américo e os seus Sucessores recusaram sempre subsídios dos senhores governos. Obra de pobres e para pobres, pode dizer-se que o grande apoio da Obra da Rua, constituído pela Casa do Gaiato, Lares do Gaiato e Calvário, foi sempre a simpatia com que sobretudo os pobres lhe enviam os seus donativos.

O meu incómodo em face das notícias com que por vezes uma imprensa mal informada agride a Casa do Gaiato e o Calvário resulta de não perceber que não façam nenhum esforço para visitar com olhos de ver essas obras e ouvir os seus responsáveis. É um "jornalismo" que infecta uma profissão que grandes jornalistas prestigiaram. Quando um chamado jornalista diz que na Casa do Gaiato há exploração de trabalho infantil autodefine-se como um ignorante absoluto que abusa da miséria moral. A exploração do trabalho infantil que lá existe é da mesma natureza que o meu querido Pai exercia quando me punha a ajudá-lo logo que fui para a escola primária.

A Obra da Rua quer ser independente de qualquer poder político e governamental, pois só assim pode manter-se fiel à pureza da sua criação e intenções, presentes nas Normas de Vida que lhe definiu o Padre Américo. Claro que isso incomoda os poderes, que perdem assim o direito de interferir. É esse terrível poder de recusar que sempre incomoda os poderes. Já foi assim com o Senhor D. Pedro V, que falou mal de Alexandre Herculano, que o adorava como pai, porque esse grande português lhe recusou todas as honrarias e penduricalhos com que procurava torná-lo venerador e obrigado. Esse comportamento da Obra da Rua/Casa do Gaiato devia merecer, pelo contrário, o respeito e o apoio dos poderes políticos, neste país em que a subsidiodependência se tornou uma das profissões mais obscenas, mas rendosas.

O que eu possa fazer, e são tão poucos os meus saberes e poderes, para ajudar a divulgar o exemplo sem paralelo que é a Obra da Rua/ Casa do Gaiato, o que eu possa fazer, dizia, não tem nada de generosidade. Tem que ver, sim, com uma obrigação moral que é de todos nós portugueses, que devíamos estar gratos a essa Obra sonhada e criada pelo Santo Padre Américo, e continuada pelos seus Sucessores e Padres da Obra, padres mendicantes que dedicam toda a vida, todas as horas da sua vida, às crianças desprotegidas e aos doentes que ninguém quer acolher. É uma obrigação que assumo com alegria, mas com tristeza por poder tão pouco. É uma obrigação de todos nós, como disse. Uns assumem-na; outros não. Nas largas avenidas da bondade do Santo Padre Américo há de certeza compreensão para todos. Até porque, como diria o tão saudoso e querido amigo Óscar Lopes, o Padre Américo "gostava de toda a gente, pobre gente".

José da Cruz Santos