
MALANJE
Há dez anos, foi-nos apresentado por uma das nossas lavadeiras... sapateiro de profissão. Quando tio Bártolo aqui esteve, disse-nos que era necessário alguém para tratar do calçado dos nossos rapazes e decidimos contratar o tio Miguel. Depois de vários anos, percebemos que já não necessitávamos realmente dos seus serviços e explicamos-lhe que não poderia continuar a trabalhar connosco. O tio Miguel explicou-me que tinha 60 anos, que vivia sozinho, que eu não devia despedi-lo e que poderia ser colocado noutra área de trabalho. Foi assim que decidimos passá-lo para a agricultura. Aos 65 anos aposentou-se e a Casa do Gaiato passou a dar-lhe uma pequena tença, já que o Estado só dá reforma a quem contribuir com 35 anos para a Previdência Social. Além disso, como a muitos trabalhadores, deixamos-lhe um pedaço de terra para cultivar mandioca e outros produtos básicos para a sua alimentação. Muitas vezes encontrei-o na estrada vindo a pé da cidade que fica a cerca de dez quilómetros de distância, e dava-lhe boleia no nosso carro. Sempre me disse que não tinha dinheiro para o transporte e aproveitava o da Casa do Gaiato sempre que podia.
Há várias semanas encontrei-o à porta da nossa secretaria com uma receita de medicamentos, porque queria pedir ajuda para os comprar. Depois de falar um pouco com ele, fui ao meu quarto e dei-lhe alguns valores para aviar a receita. Ele fica agradecido e com aquele olhar de simplicidade que muitos anciãos destas terras ainda possuem, nos despedimos. Outro dia, uma das nossas trabalhadoras, disse-me que encontraram o tio Miguel morto, junto a uma árvore, a caminho da cidade. Segundo me relataram, naquela tarde caiu uma grande chuva e o tio Miguel regressou à cidade, no meio da tormenta, a pé, como já estava debilitado pela doença, sentou-se junto à árvore para esperar a Irmã morte. Esta morte recorda-nos quantas pessoas envelhecem e depois de uma vida passada a trabalhar para o bem da sociedade, esta não tem como oferecer-lhe uma pequena ajuda para o seu sustento. Quantas e quantas pessoas idosas vemos indo aos campos colher um pouco de alimento, para comer somente naquele dia.
Terminou o segundo trimestre lectivo e aguardamos os resultados dos rapazes - o primeiro trimestre foi um desastre.
Começamos a Páscoa recebendo os alevinos dos primeiros sete tanques de tilápia. Agora temos de criá-los, protegê-los, para um dia podermos comer uma parte e comercializar a outra. Outras áreas produtivas, como carpintaria e serralharia, estão praticamente paradas. É uma situação generalizada em Angola e acarreta um aumento de roubos e agressões. No nosso caso, já nos roubaram as chapas do telhado de um armazém e vários animais.
Padre Rafael