História do Património dos Pobres
Do nascimento do PATRIMÓNIO DOS POBRES
Já lá vão anos e anos e ainda hoje guardo no peito a minha primeira visita a um tugúrio, em Coimbra. Era a senhora Amélia, que tinha engomado gerações de estudantes e agora, cega e velhinha, cuidava de três netos de uma filha infeliz, cada um de cada homem e todos eles sem pai! Encontrámo-nos pela primeira vez na alameda do Jardim Botânico; ela seguia pela mão de uma criança, mãos ocupadas com uma cesta de vime e dentro uma panela de folha. Ia pelo caldo, ao hospital militar. De outra maré, foi num banco de pedra. Ela tinha justamente acabado de receber a cesta das mãos de um soldado e agora, sentada mais o seu neto, estava comendo o rancho. Eu sentei-me ao lado sem nada dizer. O pequeno nada. A senhora Amélia era quem dizia. Dá a colher ao seu pequenino companheiro e insiste. Ateima. Quer que ele coma. Anda meu filho, come! E dos restos comeu ela. Ainda que o não soubesse antes, agora ficava sabendo; era a avó! O dia declina. Homens e mulheres passam rente, levados à sua vida. A senhora Amélia pede-me uma visita. Inteirado do nome da rua e número da porta, prometi. Vou. Bato, a uma hora em que todos estavam. A porta abre-se. Era um portal! Não há uma janela. Não há esgotos. Não há espaço. São três rapazes. É a pecadora pública. É a engomadeira. Eu não acreditava e mais estava na presença do facto. Não tinham outras dependências. Era aquilo e a renda. Retirei-me, do local mais apertado do que a família. Volvo à minha residência e naquela noite não fui capaz de dormir. Faltava-me o espaço. Faltava-mo o ar. A minha inquietação era muito maior do que verdadeiramente a daquele grupo de cinco, por quem me inquietava. Levanto-me e apoio os braços no peitoril. A janela do meu quarto, dizia para o Mondego. As luzes dos jardins repetem-se no espelho das águas. Sombras do choupal dão formas e volume. Ouviam-se rouxinóis ao desafio. Era a paz! Eu, porém, continuava sem ela. Sem paz. Tinha-se apossado de mim uma ideia fixa. Perguntava a mim mesmo, se seria possível a existência de réplicas àquela toca. Doente como então era, o meu Prelado havia-me dispensado de todas as obrigações, tendo eu tomado esta de visitar Pobres, por não servir para mais nada. Colocava Deus no meu caminho pessoas e factos, que haviam de desabrochar mais tarde em uma Obra, urgente e inédita - o Património dos Pobres. São assim os caminhos do Senhor. O que não for por Ele revelado, é para nós, mortais, desconhecido. Grande predicado este de Se esconder à maneira que Se nos revela! Bendito Deus em todas as Suas Obras.
Padre Américo, in Ovo de Colombo