História do Calvário e da Casa do Gaiato de Beire

CALVÁRIO - Anúncio (formal) da fundação

Data: 1954

«Chegou a hora de dar a notícia de uma Obra que há muito trazemos no peito, a saber: um abrigo onde possam morrer cristãmente legiões de inválidos sem morada certa. Vai-se-lhe dar o nome de Calvário. O Calvário! É um nome tirado do Evangelho. É o resumo de toda a economia da Redenção. Fazem hoje falta no mundo estes nomes, estas ideias, estas Obras humanas de sabor divino. Um lugar onde cada padecente leve, sim, mas não arraste a sua cruz dolorosa. Na verdade, todos compreendemos que se ele é difícil ao incurável não ter onde viva, quanto mais desesperado não ter sítio onde morrer?! Temos obrigação de meditar nestas coisas e reagir contra o estado delas. Não podemos airosamente alegar ignorância, porquanto os diários costumam dar a notícia do homem e da mulher que, agora e logo, aparecem mortos nos palheiros. Maior é a nossa culpa.
Parece que esta feição da vida social tem escapado aos organizadores de hospitais. Não sei se em qualquer deles haja sido instalado o serviço permanente no caso dos Incuráveis. O hospital tem a função de curar. Os leitos são para eles. O Incurável não pode entrar; e se, entrando, prova um caso sem remédio, deve ir-se embora. Esta é a doutrina pública. E nós agora podemos perguntar: Ir para onde? Para onde vai aquele desenganado, sem casa, sem família, sem amigos, sem nada? Eis aqui a pergunta crucial. Por si só, condena ela, ou pelo menos declara incompletos, os grandes hospitais onde se verifique a omissão.
O lugar escolhido para esta nova realização da Obra da Rua, é a quinta da Casa do Gaiato de Beire, a uns quinze quilómetros de Paço de Sousa. No sítio mais indicado elegemos dois hectares. O arquitecto riscou. Ao meio é a residência hospitalar, para casos que exijam maior e mais próxima assistência. Em redor ficam as residências: sistema aldeamento.
Não há o criado. Não há verdadeiramente o enfermeiro. Procura-se tornar válido o Inválido, para que esqueça e seja alegre. É uma Obra de Doentes, para Doentes, pelos Doentes. Temo-nos dado excelentemente com esta divisa nas Casas do Gaiato.
O mundo tende a colocar de parte aquilo que parece não prestar; um incurável é um estorvo. O mundo engana e engana-se. Na hora em que a chamada ciência se retira começa o poder de Deus. O incurável é uma fortuna. Mais do que as Casas do Gaiato, mais do que o Património dos Pobres, esta edição da Obra da Rua vai ser a sua maior riqueza. Cada doente traz consigo uma fortuna, não digo a da garantia do seu sustento, que seria muito importante, mas ele traz mais do que isso. Eles são páginas em sangue de teologia. Se hoje milhares de portugueses e estrangeiros aparecem em nossas Casas a ver o incrível, que será amanhã na quinta de Beire (Paredes), onde Deus vai ser ainda mais glorificado?!
Mas ele existe também uma outra modalidade de assistência que o Calvário deseja e se propõe servir. São os convalescentes... O Doente tem alta; não permanece. A razão é sempre a mesma. Tornamos a perguntar: Para onde vai? O Calvário espera-o. Será mesmo um ponto reconfortante para os que estiverem à frente. Podem verificar dia-a-dia um perfeito rejuvenescer. Observar a carne e o sangue. Ser testemunhas de vista de reintegrações na vida social; e meditar que, se não fora a Obra, aquele doente curado breve tornaria ao seu mal e viria até a morrer. Toda esta riqueza estava até agora escondida e vai aparecer na Obra que Deus inspirou. Muitos Doentes hão-de ter ocasião de afirmar com verdade que, não fora a existência de Calvários e eles teriam morrido de penúria.
O êxito de uma Obra assim não se discute. Não há homem de bem que possa duvidar. Não tem bases para isso; só por ignorância. Primeiramente, temos a oração dos homens. Além da dor que consome incuráveis e convalescentes, existe outra ainda maior: é a dos que não lhes podem valer, a começar pelos próprios médicos e pessoal hospitalar. Além destes, temos os que escutam queixas dos Arrastados. Os que lêem casos nos jornais. Os que não têm tempo para isso, mas ouvem falar. É o sentimento humano. O conhecimento de Deus, pelo conhecimento dos homens. Sim. Ninguém duvide do seu êxito. Tal como o Património dos Pobres, que parece não haver em Portugal sitio de vago onde erguer mais casas, também agora o Calvário vai ser o caso do dia. Noutras vilas, noutras aldeias, noutras cidades. Abram-se Casas desta natureza para que os jornais não continuem a dar a triste notícia do Abandonado que cai nos caminhos por não ter onde morrer.
Mas há ainda outra razão mais subida do seu formidável êxito, e esta não pode falhar: é a vontade de Deus. Ele quer que os homens se salvem e eles só o podem realizar amando. Este é o Mandamento.
Ora os Calvários são o sítio onde os homens podem amar o seu semelhante como a si mesmos.
Estamos em frente de uma empresa onde o dinheiro é preciso. Muitos dinheiro. Milhares... Mas isso não pode ser obstáculo. Nem para a construção nem para a manutenção de centenas de doentes. Nada disto é objecto de receio ou de dúvidas. Os obreiros do Evangelho não põem a questão. Eles têm de caminhar sobre as ondas, ainda quando as tempestades se formem no espírito dos homens que são as mais difíceis de acalmar. Não podem por um momento confessar medo. Não podem duvidar. Uma vez que sentem a urgência da Obra e ouvem a palavra do Mestre, fecham os olhos, mergulham e realizam o impossível. Eis.» (Padre Américo, in O Calvário)