FUNDAÇÃO DA CASA DO GAIATO DO PORTO (PAÇO DE SOUSA) - HÁ 76 ANOS
E fui dar ao Porto, cidade industrial e generosa. Havia de arranjar ali alguma coisa, e arranjei um espectáculo naquela tarde. E que vos vou contar? Um facho de Luz, um facho de Luz que se acendeu no meu coração. Encontro cinco crianças ao pé do Mercado, sentadas no pavimento de pedra, ocupadas com grande manjar: tirar cascas de frutas de dentro dum caixote do lixo. E eu sentei-me. Até aí chegou o meu heroísmo. Para comer, não. Não tive coragem, porque as cascas de frutas vinham sujas dos despojos do caixote...
Fiz-lhes perguntas. As respostas são idênticas. Qualquer criança do mundo, seja de qualquer parte do mundo, que é injustamente abandonada, elas todas, todas elas têm a mesma resposta para dizer.
Entrámos no Mercado. Era Inverno. Isto era em 1942, no fim do 42. Não havia pão em Portugal, que era racionado como em toda a parte.
E uma mulher do povo, padeira dali, parece que compreendeu no meu semblante a fome que eu trazia no meu estômago por ver aqueles pequeninos com fome; pois que sentir com os Pobres é a verdadeira caridade. E ela veio ao meu encontro e disse:
- Tome lá esta broa de pão. Tinha-a para os meus filhos, mas Deus há-de remediar o meu mal.
Remedeia sempre. E todos comemos, então, ali, a broa, o pão. E eles a fazerem-me perguntas. Queriam que eu fosse ver o lugar onde eles dormiam, mas eu estava farto de ver tudo isto. Queria um remédio, senão para aqueles, para outros que se levantassem.
E a chama começa a tomar vulto dentro de mim; já vinha acesa de Coimbra. E eu rezo, vou para os passeios, entro nos eléctricos ou nos comboios. Parece que falo, parece que vejo, parece que leio nos jornais. Rezo: «Senhor, guiai os meus passos para dar de comer e pôr a mesa à criança que já nasce sem telheiro».
E daí a pouco estávamos instalados aqui, em 43. Em 27 de Maio de 1943, começámos a lançar as pedras desta Aldeia que já se levanta com 16 edifícios. 43!... Nem 6 anos! Senhores, sem desprimor para outros, ninguém podia fazer mais, ninguém podia fazer melhor.
Enquanto se levantam as casas em cima, na Aldeia, em baixo no convento velho e de ruínas que nos deram, nos já estávamos instalados, uns 50 ou 60. Começaram cinco; eram cinco os da Casa de Miranda; cinco fundadores; senhores fundadores: um cozinheiro, um despenseiro, um da rouparia e mais dois para recados. E com estes estivemos lá alguns meses. Em cima, aqui na parte mais alta da quinta, cem pedreiros, digamos, trabalham de pico na mão, a levantar estas casas, formosas e propícias. A quinta imensa, uma mata lá ao fundo, mais abaixo terras de semeadura, por onde passa um vale, um rio pequenino, uma corrente d'água cristalina. Muita abundância de tudo. Os nossos rapazes que vão entrando, começam a encontrar-se a si mesmos, a valorizarem-se por si mesmos, a ter amor à vida... a rir-se. Que lindo que é uma criança rir-se. E quanPdo são muitas, que linda é a alegria que lhes transborda no rosto! E como é triste ver uma criança chorar. E quando ela tem razões para isso - tristeza dupla!
Éramos muito felizes. Subimos prá Aldeia. construída de novo no ano de 1946. Então, aí, felicíssimos. Éramos 90, quando entrámos prá nossa Aldeia.
Método? Amar.
Quem preside? O rapaz. Quem marca, quem talha? O rapaz.
De quantos e quantos problemas me têm eles livrado! Aqueles a quem damos voz activa para falarem, para exporem os seus problemas, as suas queixas e as suas questões.
Pai Américo - Viagens, pp 51-53