DOUTRINA

A verdade é uma tal força que mesmo sem ser vista comove as almas

Recebi recado que tinham chegado uns senhores e estavam ao pé do cruzeiro à minha espera. Desço. Eram dois carros ligeiros e uma data de pessoas à volta. Apresentaram-se: Vicentinos de Valbom e seus amigos. Aqueles vinham tratar da construção de casas.

Palavra puxa palavra, compreendi que Valbom é uma freguesia do concelho de Gondomar. Digo das oito moradias implantadas em Vale de Ferreiros, num cabeço rente à estrada. Digo mais que sendo ali Rio Tinto, é muita pena que a Câmara de Gondomar não acuda e urbanize. Disse e disse e disse. Calhou bem. Um dos presentes era justamente vereador! Ouviu. Pode relatar aos seus colegas. Vamos a ver.

Estando eu ainda em conversa, eis que um terceiro carro se aproxima, de onde sai uma senhora e um cavalheiro. Saíram e ficaram no mesmo sítio como quem deseja falar. Despeço­ -me dos vicentinos que vão percorrer a Aldeia na companhia de um cicerone e aproximo-me dos recém-chegados. Ela é dinamarqueza, ele é norueguês. Este reside no Porto há um ror de anos e ofereceu-se para acompanhar aqui a ilustre visitante. A primeira coisa foi apresentar as suas credenciais. Não vinha em missão oficial, mas era oficialmente apresentada pelo seu país. Como sempre, quando assim é, costumo chamar um rapaz e desta vez não fugi à regra. Foi o Júlio Mendes. Eram três da tarde. Duas horas depois ainda o Júlio não se tinha cansado de mostrar e dizer, nem os visitantes, ao que parece, de ver e ouvir. Mas eram horas do chá. Eu tinha decidido oferecer um chá aos dois escandinavos e fui ao seu encontro para esse fim. A senhora vem munida de uma máquina fotográfica e um livro de apontamentos. Na varanda da casa-mãe eu observava. Em muitos sítios e por várias vezes, a visitante tirava vistas e escrevia. No momento em que me aproximo, estava ela embebida no meio de uns trinta dos mais pequeninos que empilhavam lenha rachada por detrás da casa três. Ela, que vem das sete partidas do mundo, parece ter achado uma coisa nova e não soube esconder o seu espanto! Os mais pequeninos, sobretudo, eram a sua enorme confusão. O Júlio tinha certamente explicado as normas da nossa Casa. Teve duas horas para o fazer. Falou durante todos os minutos. Mas uma coisa é ouvir, outra é ver e outra é o sentir. Tinha visto e ouvido. Agora era o melhor: sentir. A minha presença foi-lhe ali necessária. Ela tornava-me responsável por tudo que estava vendo e queria que eu decifrasse tanta soma de beleza. Respondo que também não sabia como aquilo era feito. Só os artistas podem decifrar a sua obra, mas nada disto é meu. Não é obra minha. Não sei dizer.

Seguíamos, agora, pelos jardins fronteiriços. Há um lago. Plantas e flores. Um talude bordado. Patos na água. Colunas de granito que foram do antigo convento. O Antoninho, blusa azul e avental branco, diz-nos da porta da casa-mãe que o chá está na mesa. Mais encanto para a viajante. Toma o livro de notas e escreve, escreve, escreve. Pergunta se não há ninguém a tomar conta dos mais pequeninos e eu respondi que os chefes. Isto parece não a ter satisfeito e daí nova insistência: «Mais ninguém?!» Compreendi. Era uma mulher que perguntava. A mãe quer saber se aqui há mães! Todo o seu enlevo, a sua insistência, a sua curiosidade; tudo se resumia num estuante desejo.

Tínhamos entrado no pequenino refeitório onde o chá vai ser servido. Sobre a mesa, uma toalha de linho. Sobre esta, em pratos pequeninos, eram bolachas, torradas com manteiga e fatias de um bolo de fruta que ontem nos haviam oferecido. Um açucareiro, um bule, uma caneca de leite e outra de água fervente. É assim em Londres. No final, propus-me dar à nossa ilustre hóspede uma grande certeza. Apresentei-lhe as três senhoras da Casa, que são outras tantas mães. Depois do chá uma impressão melhor. A última é a que fica. Ela viu e conheceu. Hoje sabe e vai dizer para a sua terra que os abandonados de Portugal vivem em famílias e têm mãe!

No dia seguinte, vou do meu quarto em direcção à Capela e oiço um doce chilrear. Fui ver. Eram os cinco infantes à roda da mãe a receber mimo e a dar meiguices, tal qual os filhos que têm a sua mãe.

Eis aqui o fundamento. Fundamento da verdade que a nossa visitante vai espalhar na Dinamarca, entre os seus. Não se trata de palavras. Não temos aqui propaganda. Não se finge. A verdade é uma tal força que mesmo sem ser vista comove as almas.

PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, 1.ª ed., 1986, pg 354-357