DOUTRINA
Coisas nossas
Ontem, ouvi dum visitante que um rapaz da sua terra fora em tempos pro Brasil, aonde esteve por três anos, de onde seguiu prà América do Norte e ali se casou.
Constituiu família. Dois filhos que tinha a estudar, quis ele que viessem concluir na sua terra. Na sua Pátria. Saudades do berço! Lá vem o avião do Novo Mundo e nele os filhos mai-lo pai. Enquanto em Lisboa, tudo correu sem novidade. Era Lisboa, a ruidosa. Mas aquele pai amava muito a sua terra natal e quis juntar aquele amor ao que tinha pelos filhos. Um amor nunca anda só. Lá vai o comboio p'ra uma terra da província — a terra do enamorado.
Não sei como seria a casa aonde o pai nascera. Os visitantes não desceram a isso nem eu lhes perguntei. O que eu sei, por eles assim me terem dito, é que, dias passados, os dois jovens estudantes, nados e criados na América, intimaram o pai a regressar, ou eles o fariam no primeiro transporte. Causa? O nível de vida. A piolhice nacional.
Até aqui, falaram os visitantes. Agora, nós. Estes dois moços, mesmo que não tenham presenciado em sua vida, porque moços, devem, ao menos, ter ouvido falar na miséria dos Estados Unidos da América. Tem de haver lá muita miséria, sim, ou ele não fosse terra de milionários. Mas tem outra apresentação. Lava a cara. Faz a barba. Veste camisa. Usa sapatos. Sabe comer, tendo quê. E, sobretudo, é miséria que dá fé de si e gostaria de se libertar. Ora nós não. Aqui não. O que os rapazes devem ter estranhado foi o maravilhoso à-vontade. A delícia. A felicidade daquela gente. Assim é que deve ter sido… — daí a repugnância, o desconforto, o desejo de regressar.
Era duma vez eu a bordo dum transatlântico aonde seguiam umas centenas de emigrantes, gente nossa na sua maior parte. Fazia sol. Mar de leite. O bico da proa era uma pinha de gente; de emigrantes. Havia mulheres a catar mulheres, tal qual faziam em suas terras, ò sol. Eu já tinha visto, de onde me encontrava, sem que isso me repugnasse. Eu sou português. Sou de uma aldeia de Portugal aonde hoje se faz na mesma! Nisto, aproxima-se um grupo de senhoras, mãos arrochadas na cabeça, verdadeiramente apavoradas: look. look at that! Eu olhei prà que já tinha visto. Fingi pavor. E enquanto aquele grupo de passageiros se retirou espavorido, continuavam aquelas santas, tais quais em suas terras, debaixo da figueira da horta que lá ficou. Elas traziam piolhos. Fazia sol…! Ora aqui é que está!
O nosso povo desceu tanto, tanto, tanto, que não dá fé! Procurar erguer o nível de vida desta gente é a coisa mais difícil de Portugal! Quem tal fizer, encontra duas barreiras quase intransponíveis. A primeira, é o hábito dos que assim vivem. Estão afeitos. A segunda, é a força dos que não gostam de os ver erguidos.
É por isso mesmo que nem decretos nem discursos nem sermões. Nada disto presta se não houver também acção. Um nadinha de sangue. Um pouquinho dele, sim — mas de todos. De todos os portugueses.
«O Verbo fez-Se carne» e sangue! A quanto não nos obriga esta Verdade!
PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, 1.ª ed., 1986, pgs 174-176.