DOUTRINA

Um casamento

O dia tinha sido previamente ajustado; e na véspera, um sábado de Abril de 1947, chego a Coimbra ao cair da tarde. Segui no Morris, tencionando continuar nele até Lisboa, como de facto aconteceu. Não procurei o Lar do ex-Pupilo, à minha chegada, escolhendo, de preferência, a casa de um amigo aonde tenho cama e mesa, que este é o privilégio de quem, por amor de Deus, se despoja de tudo. Qual é, então, esse privilégio? Encontrar tudo e sempre.

Tinha eu lavado as mãos e a cara, como é costume depois de longas viagens. Estava agora à minha vontade, regalado, numa cadeirinha de conforto. A criada do meu amigo dava voltas na cozinha… Tudo muito lindo e muito bem. Nisto, ouve-se a campainha. Uma vez. Duas vezes. A cozinheira não vai abrir, de ocupada! Fui eu. Quem era? Quem havia de ser o impertinente? Não era um. Eram muitos. Eram sete rapazes do Lar, maioral à frente: «O jantar não é aqui. É em nossa Casa. É no Lar. Se V. não vem, vamos buscar mais sete!» Não foi preciso ir buscar mais ninguém. Fui. Um que tivesse vindo, eu iria na mesma. Não é a força que vence. É o amor.

Quisera ficar aonde estava. Tenho necessidade de me refugiar, de vez em quando, mas não posso fazê-lo. Os rapazes não compreendem que a vida tenha o seu desgaste. Só hão-de dar fé quando a deles começar a desgastar-se. Fui. Estavam todos à mesa. Comemos. No fim do jantar reza-se o Terço em comum. Cada semana preside seu pupilo. Acaba a oração. Ninguém se levanta. Há silêncio.

— Diga alguma coisa à gente!

As cadeiras, puxadas da mesa no fim da refeição, estão agora encostadas às paredes da sala e cada um sentado em cada uma.

— Diga-nos uma palavra; vai-se amanhã um embora.

Era o noivo. O Zé Simões. Estava ali no meio de nós. Não é o caso de levar saudades e deixar saudades. Não é, que o rapaz não vai partir. Muda de lar. Eu disse duas palavras. Desejei que os até ali namorados, de amanhã em diante, continuassem a ser namorados. Disse mais coisas. A eloquência não era minha. Vinha toda do lugar e da ocasião: Um filho que se vai casar, a ouvir do pai, ao pé dos irmãos, os derradeiros conselhos. O noivo dá-me o seu retrato mai-lo da noiva. Quereria falar, mas escreveu e eu guardo:

«Saio de um lar para outro. De onde saio, consegui formar o meu ideal e fortalecer a minha vontade. Consegui, pelo meu esforço, regras de disciplina, de método e de ordem moral. Tudo isto levo para o meu novo lar aonde espero manter com a minha companheira a integridade do meu carácter. À Obra da Rua manifestarei a minha gratidão com o meu procedimento na sociedade.»

Retirei para a casa do meu amigo. Pedi que fossem muito pontuais; e no dia seguinte, às dez precisas, estavam os dois aos pés do altar, na Sé Velha de Coimbra. Que ninguém jamais se atreva a separar as almas que Deus uniu pelo Sacramento do Matrimónio!

A casa de sua mulher e família fica a dois passos do templo. Elas são quatro irmãs. Uma casou-se agora. Outra vai casar-se brevemente com um dos nossos rapazes. As outras, espera-se que também. Houve um pequenino copo d'água. Eu estive. Tinha de estar. Viera de Paço de Sousa propositadamente para assistir à festa e o copo d'água faz parte dela. Mas não é tudo. Havia mais festa. É que eu ia para Miranda do Corvo com passagem por Lousã. Soube-se disso na reunião. Pois tanto bastou para que um dos rapazes me segredasse:

— Leve-os até à Lousã. É a lua de mel!

Pois sim. Achei bem. Passou-se recado. Num instante estavam os dois no Morris. Deixei-os na vila e fui para a Casa do Gaiato de Miranda do Corvo. Eis de como foi o casamento da Celeste Baía com o José Simões.

O casamento é o acto final dos rapazes da nossa Obra. Alguns fazem actos mal feitos. Sim. Tem acontecido. Para que é que há-de a gente esconder a verdade? Ou dizer somente uma parte dela? Se assim fizesse, os leitores haviam de ficar a supor que a Obra da Rua é perfeita — e isso não é assim. O que é, não costumo fazer aqui relatórios das coisas que me desgostam. Basta a desdita dos que se têm amancebado e as lágrimas que por isso mesmo eu choro.

Eles vêem e sabem de mancebias em redor. De iguais. De maiores. De grandes. Eles têm ouvido fazer escárnio da água benta e do latim do padre e igualmente têm ouvido que o tal casamento pela Igreja não é mais que água benta e latim. Isto tudo, mais a natural herança deles, têm feito com que alguns fiquem para trás. E não são mais porque se tem lido em nosso Lar O Matrimónio Católico, do Padre António Brandão. Ali vem tudo menos a água benta e o latim.

PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, pg. 153-156