
DOUTRINA
Um bocadinho de Doutrina
O nosso «Gari» foi um dos heróis da derradeira venda d'O Gaiato no Porto. Ele é do Porto. Era das ruas. Conhece os aljubes por dentro. Tem um nome tão lindo: Alfredo Rosa! Quando chegou à nossa Aldeia, andávamos ocupados a colher cestos de milho. Enamorou-se das espigas. Prendeu-se à terra. Foi chefe dos da erva e nessa obrigação fez a quarta classe. Hoje é chefe dos refeitoreiros; e que chefe!
Pois o «Gari» foi vender e fez uma descoberta: De que se havia de lembrar? Aonde é que o «Gari» vendeu? Nos engraxadores e nas barbearias. Demos-lhe a palavra: «Eu metia-me nos engraxas e nos barbeiros e aquilo é que era! Os senhores mandavam-me embora, mas eu chateava até eles ficarem bravos e no fim compravam!»
Ora eu, se lá estivesse, não deixava. Não aprovo. À força não vale. Mas eles levam carta branca e riscam. As iniciativas nascem. Dêem-se asas a estes rapazes e deixem-nos voar. Asas de pomba, já se vê. Outras que sejam, não elevam.
O «Gari» conta-me um episódio. Foi o caso que um senhor lhe dissera assim:
- Não compro o jornal.
- Compre que é para ajudar o Padre Américo.
- O Padre Américo não precisa.
- Olhe que sim!
- Não precisa. Se precisasse, tinha ido a Vila do Conde a uma festa que ali se deu para a Casa do Gaiato e ele não foi nem aceitou o dinheiro da festa. Não dou nada. Ele não precisa!
Ora vamos fazer aqui um bocadinho de doutrina:
Não sabia que era mestre. Nunca dei fé de tal. Foi, há dias, que eu tive conhecimento. Estava em um dos ministérios quando ouvi ali dizer que em tal cidade, numa assembleia de circunstância, o orador da noite dividiu a assistência em duas épocas: modo de fazer assistência antes do Padre Américo e modo de fazer assistência depois do dito. Eu escutei e disse que «há mais Marias na terra». Mas não; trata-se da minha pessoa! Estas e outras semelhantes são tremendas cascas de laranja. Não que mas atirem para eu cair; eu é que posso escorregar. Outros mais espertos têm-no feito. E não se magoam que isso é justamente o mal. Senhor, que eu veja sempre as pessoas e as coisas na Vossa Luz!
Vamos, pois, à lição. Claro que os mestres não. Esses não vêem. Esses nunca escutam.
Os nossos rapazes estão escrevendo uma das mais importantes páginas da história da Assistência em Portugal. Eles são a ânsia viva, o escândalo do dia, o remexer dos corações. O que eles dizem e o que deles dizem, é isto mesmo. Saídos da montureira, ignorados de todos, crápula, estes indesejáveis de ontem são hoje menina dos olhos diante de quem se chora. Dão recados. Ouvem recados: «Não dou nada ó Padre Américo». Fazem história.
Como na ocasião se disse aqui, efectivamente eu recusei o produto de um chamado «arraial minhoto» que vinha anunciado nos jornais do dia, a favor da Casa do Gaiato. Recusei e disse porquê, sabendo, antecipadamente, que por isso viria a ser malsinado. «Não dou nada.» É natural. É humano. Compreende-se.
A boa semente é para os terrenos preparados e os nossos cristãos não estão preparados para a doutrina do amor do Próximo. É preciso reflexão. As almas afeitas a reflectir quando se trata de dar aos Pobres, perguntam-se imediatamente: - Quem sou eu e quem é o Pobre? Ele é muito mais fácil comer e bailar a favor dos Pobres, do que medir cada um a sua verdadeira posição perante o Pobre. O respeito e o amor que se lhe deve, nascem justamente deste exame de consciência. Qual a vantagem de um sobre o outro? Aonde a qualidade? Que é do mérito? És rico? Podes não prestar! Toda a festa mundana que se faça em favor dos Pobres marca decadência de vida cristã. Qualquer que seja o rótulo, o pretexto, a cor, é sempre droga. Se são promovidas e realizadas pelo que há de melhor na nossa sociedade, oh droga! Quem ama, não faz assim. Quem ama, chora. Envergonha-se de ser rico. Ajoelha-se no chão, pergunta a Deus porquê e vai sozinho ou manda outros em seu nome repartir, já que ele o não pode fazer pelas suas obrigações.
Ora aqui está! Este é o fundamento. Quem construir sobre esta rocha não tenha medo dos ventos.
Oh doce engano o de brincar e saltar por amor dos Irmãos que sofrem! Vamos que empobrecesse um nosso amigo; ele é tão fácil empobrecer! Doenças, reveses, sorte! Chora-se ou folga-se por seu amor? Queremos que chorem ou que folguem por nosso amor se empobrecermos?!
Mais do que sociedade de amigos, o Cristianismo é uma Família com um Pai comum: Pai nosso! Somos todos Irmãos. Esta é a doutrina mansa e poderosa que derrubou o maior império do mundo. «Olha como eles se amam!», diziam os romanos dos cristãos.
A maior prova de que o Amor basta para realizar obras, está nesta nossa Obra. «Um arranha céus social», como vem a dizer na carta de um sacerdote. Apesar dos que ostensivamente não dão para ela e, até por causas desses, ela é um gigante em marcha a dizer que não à doutrina do século e que sim à do Evangelho.
PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, 1.ª ed., 1986, pg
136-139.